Entidades classistas, representantes dos
servidores públicos que trabalham nos estabelecimentos apenais de todo o
país, começam a se mobilizar, visando mostrar, aos senhores
parlamentares, mais que uma conveniência profissional, a necessidade
social desse reconhecimento. Pretendem demonstrar que, antes de se
constituir em pleito classista, referida PEC vem preencher uma lacuna
social premente, contribuindo para redução das ameaças no ambiente de
insegurança em que se vive. Têm convicção de que, fatalmente, esse
trabalho de esclarecimentos deverá estender-se a algumas pessoas e
órgãos que, ainda, não se mostram convencidos da oportunidade da
aprovação.
Essa postura, vista por eles como
equivocada, decorreria de falta de informações para uns e de inadequado
embasamento técnico para outros, o que poderá ser suprido com
argumentações e explicações que conduzam ao convencimento do impacto
social extremamente positivo, decorrente da promulgação da PEC-308.
Difícil será debater com quem fundamenta
seus pontos de vista em princípios doutrinários arcaicos, anacrônicos.
Contudo, se houver uma postura receptiva para o diálogo, para o debate
construtivo, provavelmente ocorrerá reexame de posicionamentos. Há
muitas concordâncias no varejo e poucas, mas fortes, discordâncias no
atacado. As divergências têm fulcro na ambigüidade conceptual e na
heterogeneidade doutrinária, cuja origem, entretanto, está numa área bem
mais ampla que a discussão sobre a Polícia Penal. A gênese está numa
instância superior, onde continuam sendo discutidos, em relação à
sociedade, conceitos e doutrina de proteção, de insegurança, de
segurança pública, de defesa social, de sistema policial, de ameaças, de
vulnerabilidades e outros mais. Mas, certamente, a discussão sobre a
Polícia Penal, ensejará, residualmente, a oportunidade de se conhecer e
entender melhor a instituição-polícia, o sistema policial, o ciclo
completo de polícia e osistema de defesa social.
Quem é contrário argumenta,
fundamentalmente, que o sistema penitenciário não se confunde com o
sistema policial; que as atribuições previstas pela PEC, para a Polícia
Penal, são atribuições de polícias já existentes, inviabilizando-a; que o
Congresso estaria propondo, como solução para a segurança pública, a
criação de uma nova polícia, além de outras colocações impertinentes,
descabidas; que essa atividade, enfim, não é atividade policial.
Entendo que o Sistema Penitenciário (ou
sistema penal, ou sistema de execução penal), como está disposto,
integrado pelo Ministério Público, Judiciário e Administração Pública,
óbvia e realmente não integra o sistema policial. Entretanto, a
Administração Pública Penal (que detém o poder de polícia administrativa
penal) o integra, sim.
Quanto ao fato de a Polícia Penal exercer
atividades atribuídas a outras polícias, é importante ressaltar que há
tendência de surgimento de especificidades para atender determinadas
peculiaridades. Recentemente, o médico era um generalista. Hoje temos,
por exemplo, especialistas em mão, em joelho, em cabeça, etc.
Constata-se haver algumas situações, bem mais complexas que a cristalina
atividade de Polícia Penal, envolvendo outros exercícios policiais,
fluindo sem que seja dada atenção a alguns questionamentos. De passagem,
lembra-se que, há bem pouco tempo, foram criadas a Polícia do Senado e a
Polícia da Câmara dos Deputados.
Originariamente, havia a expectativa de
que haveria troca de um contingente privado por um contingente público,
para a proteção patrimonial e de pessoas no âmbito das respectivas
instalações, apenas. Contudo, o rol de atividades é extremamente amplo,
pelo que são questionadas por fazerem investigações, inquéritos,
perícias, escoltas de dignitários, guardas residenciais e outras. E
mais, Guardas Municipais, que detêm o Poder de Polícia Administrativa
Municipal, criadas para proteger os próprios municipais, ultrapassam
seus limites legais de competência, quando são empregadas como força
pública municipal (a um passo de se transformarem em guardas
pretorianas) e tem havido tácita aceitação. Essa atividade continua
sendo realizada, ainda, em algumas cidades, pela Força Estadual,
cognominada Polícia Militar.
Recentemente foi criada a Força Nacional
(que, subutilizada, lamenta-se, não teve reconhecida sua extraordinária
importância) para suplementar o trabalho da força estadual ou para
cumprir atividades-força, realizadas até então pela Polícia Federal, que
vem extrapolando sua missão constitucional de investigar autoria e
materialidade de delitos, na qualidade de Polícia Judiciária da União,
não sendo, portanto, Força Federal de Polícia.
Divulgar que a Câmara Federal pretende
transformar o reconhecimento da Polícia Penal em panacéia para a
segurança pública é um equívoco, uma inverdade. Sem dúvida, trata-se de
umagrande contribuição, uma inteligente decisão técnica, visando adoção
de alguns procedimentos e comportamentos futuros, com interveniência
positiva na redução da insegurança, em razão de fortalecimento do
Sistema de Defesa Social (não, apenas, para a segurança pública). E, ao
se falar desse novel sistema, creio ser oportuno lembrar aqui que, no
enfrentamento à violência urbana, a contenção criminal é importante,
mas, a inserção social é fundamental. Falhando essa, restaria o recurso
da reinserção, através da reintegração e da ressocialização, esforços de
que participa a Polícia Penal. Quando, às vezes, grandes ameaças à
sociedade têm origem dentro das prisões, isso se dá, quase na
totalidade, por desídia governamental nas áreas administrativa,
logística e operacional, o que pode gerar desânimo e descompromisso com
os resultados da administração penal (prisional, penitenciária) em
alguns Estados.
Após essas considerações, manifesto meu entendimento de que a PEC-308 será promulgada por, no mínimo, quatro motivos.
O primeiro é que a atividade desenvolvida
pela Administração, na execução penal, é uma atividade típica de
polícia, basicamente através do exercício do poder de polícia
administrativa penal e eventualmente através do exercício da força de
polícia penal. Um entendimento inovador é de que o Estado existe,
basilarmente, para prover a proteção e promover o desenvolvimento. Para
isso, detém autoridade, bipartida em poder e força. Muitas pessoas
enxergam Polícia como sendo uma instituição que “corre atrás de ladrão e
prende bandido”. Isso é muito pouco!
Polícia é instituição, atividade, sistema
estatal de proteção social distribuída em estruturas de poder e força,
garantidora da ordem social. Dessa forma, grosso modo, o sistema
policial é integrado por órgãos distribuídos nas esferas municipal,
estadual e federal (não necessariamente existentes em todas),
desempenhando atividades que representam o sempre discutido ciclo
completo de polícia: começa pela Polícia Administrativa, a polícia de
normas, de resoluções, de fiscalizações, de sanções administrativas
(polícias do meio-ambiente, sanitária, fazendária, dos transportes, da
seguridade social, do senado, da câmara, rodoviária, portuária,
ferroviária, das construções e edificações, da habitação, do meio
circulante e inúmeras outras); passa pela Polícia Judiciária, que
investiga autoria e materialidade de delitos (Polícia Civil e Polícia
Federal), e pela Polícia de Desastres, que realiza a prevenção e a
sustinência de desastres (Corpos de Bombeiros e Comissões de Defesa
Civil); finda na Polícia Penal, encarregada da custódia e participante
da ressocialização de apenados, além de auxiliar na fiscalização de
decisões judiciais. As Forças Policiais, integrando e enfeixando esse
ciclo, fazem a polícia ostensiva, acautelam o poder de polícia de todos
esses órgãos policiais e, ainda, garantem ofuncionamento dos poderes
estaduais constituidos (Polícia Militar e Força Nacional).
O segundo é que vem passando despercebido
o fato de, na realidade, não estar sendo criada uma nova polícia. Está
sendo buscado o reconhecimento da existência de uma secular atividade
policial. Afinal, os precursores da Polícia Penal aqui aportaram
custodiando os degredados trazidos por Cabral (o Pedro), há mais de
quinhentos anos. Através da PEC federal, busca-se o reconhecimento
normativo de um órgão policial – em alguns locais, institucionalmente
virtual – mas, que, realmente, desempenha ações que integram a execução
penal, presente em todos os Estados brasileiros e no Distrito Federal.
Esse reconhecimento ensejará ocupação de espaço (em alguns Estados, as
PM e PC não querem realizar esse tipo de serviço, em outros, já estão
transferindo a missão para Guardas Penais, sólidas e/ou embrionárias) e,
também, uma identidade profissional (que trará, minimamente, dignidade
profissional e respeito).
O terceiro é que, com a estruturação da
Polícia Penal, haverá reflexos altamente positivos na sociedade,
provocados por efetividade na administração penal e instalação de uma
gestão profissional. O sistema de administração penal não está falido.
Ainda! Isso em razão, tão somente, do esforço pessoal de quem está, no
dia a dia, em contato direto com o apenado. Felizmente, alguns
governantes começam a acordar e enxergar a importância de esse sistema
estar organizado, investindo na Polícia Penal. Começam a perceber que
gastos com a Administração Penal não devem ser lançados em custos e,
sim, em investimentos. Assim, no final do ciclo da Defesa Social, iremos
encontrar profissionais altamente qualificados para a custódia, através
de seu braço armado (guardas interna, externa e de muralhas, escoltas e
recapturas), para participar da ressocialização, através de seu braço
desarmado (psicólogos, pedagogos, advogados, assistentes sociais,
médicos, dentistas, enfermeiros e tantos mais especialistas quantos
forem necessários) e para auxiliar na fiscalização das decisões
judiciais relativas à execução penal (penas alternativas, condicional,
albergados, saídas temporárias, etc.).
Alguns Estados já estão partindo para
profissionalização dessa atividade, profissionalismo de seus integrantes
e modernização administrativa, logística e operacional.
O quarto motivo é que, inexoravelmente,
hoje ou amanhã, ocorrerá esse reconhecimento normativo. A União não pode
correr o risco de uma atividade policial, realizada por um contingente
(que, muito brevemente, ultrapassará 50.000- cinqüenta mil homens e
mulheres) treinado, armado e equipado, não ter parâmetros normativos
legais, sob pena de surgirem novas forças estaduais, a serviço de
governadores, como acontecia, até bem recentemente.
A terceirização, tentada em alguns
Estados, provavelmente por erro de origem, não deu certo. Claro! Onde já
se viu terceirizar atividade-fim? Alguém já voou em empresa aérea cujo
piloto é terceirizado, ou assistiu missa com o padre terceirizado? Outro
fato é que a espiral da violência está sendo alimentada, também, de
dentro de alguns estabelecimentos penais, em razão de débeis condições
para realização das custódia e ressocialização, o que exige correções
profissionais.
Finalmente, verifica-se que alguns
Estados, ante a morosidade federal, já começam a legislar sobre o
assunto. Se por um lado é altamente positiva essa fuga da inércia, por
outro pode provocar prejuízos a determinados comportamentos,
operacionais e administrativos, que, desejavelmente, deveriam ser
padronizados em nosso país, respeitadas as realidades culturais.
Convém lembrar que é reservado à União
legislar sobre direito processual penal e direito penal (art. 22, I,
CF). Porém, compete CONCORRENTEMENTE à União, Estados e Distrito
Federal, legislar sobre direito penitenciário. “Sobrevindo lei federal
sobre normas gerais, suspende a eficácia da lei estadual no que lhe for
contrário. (art. 24, CF)”. Idealmente, pela amplitude e complexidade da
matéria, bem como seu reflexo na sociedade brasileira, a iniciativa de
reconhecimento normativo da Polícia Penal deveria ser da União,
alterando o Art. 144, da C.F., ao que se seguiria seu conveniente
delineamento, através de uma Lei Nacional.
O fato é que, para atender a demandas
conjunturais inadiáveis, Estados, ratifica-se, já começam a legislar,
alguns timidamente, sobre a matéria, curvando-se à inexorabilidade.
Portanto, o sistema de administração
penal pode e deve contribuir para a contenção criminal e para a
reinserção social, não devendo constituir-se, ainda que minimamente, em
vetor de insegurança social, conforme é possível depreender-se de fatos
ultimamente divulgados na mídia. E o Estado brasileiro é o principal
responsável pela instalação das condições e do ambiente favoráveis, que
irão permitir redução de vulnerabilidades no contexto social.
Para evitar que a União seja
vergonhosamente atropelada por legislações estaduais, que buscam
correção e adaptação, pressuponho que os senhores parlamentares
entenderão o grande alcance da PEC-308 e irão aprová-la. Já!
Amauri Meireles - Coronel da Polícia Militar de Minas Gerais
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