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sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

“O modelo atual de polícia não funciona”, diz Cláudio Beato

O sociólogo defende que Guardas Municipais ganhem mais protagonismo para evitar casos como o do Espírito Santo. “A segurança pública deve ser mais municipalizada”, diz

A paralisação dos policiais militares do Espírito Santo chega ao décimo dia com um saldo de 146 mortos até as 10 horas desta segunda-feira (13), segundo o Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo (Sindipol). Alguns policiais começaram a se apresentar no fim de semana, mas as mulheres dos praças seguem ocupando os quartéis do estado, impedindo a volta à normalidade. O dia amanheceu com ônibus circulando na Grande Vitória e o comércio, os postos de saúde e as escolas ensaiando uma retomada das atividades.

Contudo, a paralisação dos policiais gerou uma onda de violência de grandes proporções, que escancarou a fragilidade do sistema de segurança pública. “Temos de pensar em outra maneira de organizar a segurança pública, de forma que não dependamos apenas de uma corporação para manter a ordem na cidade”, afirma Cláudio Beato, diretor do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como alternativa, ele sugere pensar não em uma polícia apenas, mas em uma segurança pública cada vez mais municipalizada. “Temos de repensar o papel das Guardas Municipais, das Polícias Municipais e de uma segurança pública municipal”, afirma.

Em entrevista a ÉPOCA, Beato chama a atenção para a explosão no número de assassinatos no Espírito Santo logo após o início da greve. Segundo ele, trata-se de um fato incomum, que merece ser investigado a fundo. O normal em casos semelhantes é haver um crescimento dos chamados “crimes de oportunidade”, como os que agridem o patrimônio público, não de homicídios.

ÉPOCA – O que é mais comum acontecer quando a polícia entra em greve?

Cláudio Beato – Considerando o histórico, o que sabemos de greve – inclusive a de 1997, que atingiu vários estados – é que, quando a polícia para, aumentam os crimes contra o patrimônio, que são os chamados “crimes de oportunidade”. Nessas circunstâncias, são pessoas comuns que cometem determinados crimes. São atos “desorganizados” que não têm a ver, necessariamente, com as organizações criminosas.

ÉPOCA – O que chama a atenção no caso recente do Espírito Santo?

Beato – No caso do Espírito Santo, chama a atenção o aumento considerável dos homicídios após a paralisação da PM. Foram 146 em dez dias, segundo a última contagem da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social [Sesp-ES]. Isso precisa ser investigado e mais bem esclarecido. Não é natural ter uma correlação direta entre a greve dos praças e o crescimento do número de homicídios. É preciso entender como e onde ocorreram esses crimes.

ÉPOCA – Por que vemos um salto tão grande nos crimes na ausência dos PMs? Somos “selvagens” sem o aparato do estado?

Beato – De forma geral, sem mecanismos de controle social, seja a polícia – que é um dos mais relevantes — ou qualquer outro, é comum pipocarem os chamados crimes de oportunidade. Assim como houve no Espírito Santo, acontece o saqueamento de lojas e outros tipos de roubo etc.

ÉPOCA – A polícia do Espírito Santo está em situação pior que as de outros estados?

Beato – De forma alguma. Primeiro porque ela está recebendo o salário em dia. Em outros estados, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, há o parcelamento do benefício. É uma pena termos chegado a essa situação no país, mas é uma realidade. E mesmo se for isolada a variável salário, segundo informações do governo do Espírito Santo, ele não é o pior do Brasil, mas o 10º no ranking, que considera dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Não posso dizer o que está acontecendo em relação às condições de trabalho e a outras questões que afetam o dia a dia dos policiais. Mas melhorias nas condições de trabalho podem ser negociadas em outra instância.

ÉPOCA – Os últimos governos tiveram uma atuação firme no combate ao crime organizado e à violência de forma geral?

Beato – No primeiro governo de Paulo Hartung [2003-2007], houve uma ação muito decisiva para cortar os tentáculos do crime organizado, que estava se infiltrando em vários poderes, da Assembleia ao Judiciário. Houve ação decisiva na época, que incluiu uma força-tarefa com a Polícia Federal. Isso foi fundamental para diminuir a força do crime organizado, mas talvez não extingui-la. Algo ainda resta. Mas, de forma geral, nos últimos anos as taxas de homicídio vêm diminuindo gradativamente. [O Estado fechou 2016 com uma redução de 15% no número de homicídios, atingindo a menor taxa dos últimos 28 anos]. E Paulo Hartung continuou o trabalho que o governador anterior, Renato Casagrande, começou. Inclusive, manteve o secretário de Segurança, André Garcia.

ÉPOCA – Em termos de formação ou desempenho, a polícia do Espírito Santo é diferente das outras?

Beato – A diferença se dá no grau de formação. Até poucos anos atrás, não havia necessidade de formação superior dos oficiais. Mas, em termos de resultado, não se destaca nem como uma das piores ou melhores. É mediana. O que vemos é que também há problemas dentro da própria estrutura, onde a hierarquia foi quebrada. Isso é algo novo que a paralisação mostrou.

ÉPOCA – Especificamente sobre a PM, o que a paralisação recente no Espírito Santo pode nos ensinar?

Beato – Sobre a PM, há questões a serem pensadas no contexto brasileiro. Existem raízes mais profundas no modelo de polícia, que tem de ser rediscutido. Temos de pensar em outra maneira de organizar a segurança pública, de forma que não dependamos apenas de uma corporação para manter a ordem na cidade. A cidade não pode parar por causa de uma greve. Temos de repensar isso tudo. Nesse contexto, no Brasil todo, a emergência das Guardas Municipais vai adquirir uma proeminência cada vez maior. Já atuavam no Espírito Santo, em cidades como Guarapari, e tentaram minimizar o problema. O fato é que o modelo atual de polícia não funciona. Inclusive a ideia de ser uma PM e de que por isso não pode fazer greve está vencida.

ÉPOCA – Que protagonismo deveriam ter os Guardas Muncipais?

Beato – Temos de repensar o papel das Guardas Municipais, das Polícias Municipais e de uma segurança pública municipal. Em Belo Horizonte, isso tem funcionado muito bem. É positivo ter uma instância municipal que pense a segurança, que não apenas o estado. O estado, às vezes, é uma instância muito ampla e genérica para cuidar de problemas que muitas vezes são locais, circunscritos aos bairros. Temos de pensar não só em polícia, mas em uma segurança pública, cada vez mais municipalizada. Isso é o que temos de fazer para escapar de situações como esta que vimos no Espírito Santo.

ÉPOCA – Como o senhor avalia a estratégia dos policiais de usar suas mulheres na paralisação?

Beato – Perante a Justiça, essa estratégia não tem funcionado. No entendimento dos procuradores, o fato de as mulheres terem ocupado a linha de frente da greve não exime os próprios policiais de não exercem sua função. Pelo contrário, eles podem sofrer sanções, independentemente do papel das mulheres. O Ministério Público tem sido muito firme nesses casos.

ÉPOCA – Em tempos de ajuste e crise fiscal, o senhor acredita que veremos mais greves de policiais, de outras categorias e em outros estados?

Beato – A crise fiscal que os estados enfrentam não ameaça a estabilidade dos PMs exclusivamente, mas de todas as categorias do funcionalismo público, no país inteiro. As cidades e os estados que não cuidaram do ajuste verão proliferar greves de professores e de outras categorias do funcionalismo. O equilíbrio fiscal é uma variável vital para a própria governança das cidades, dos estados e do país. Todos pagam o preço desse ajuste.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

Mudança completa do sistema policial obtém consenso em audiência pública no Senado

Taques, entre especialistas: o sistema de segurança pública está falido

A reunião desta quarta-feira (13) da Comissão Especial de Segurança Pública do Senado terminou com uma frase que resume a avaliação dos participantes de mais uma audiência pública em busca de medidas que levem tranquilidade à população:

- O sistema de segurança pública no Brasil está absolutamente falido - disse o relator do colegiado, senador Pedro Taques, tendo a seu lado autoridades no assunto, como o ex-secretário da Secretaria de Segurança Pública do Ministério da Justiça, Luiz Eduardo Soares, e o diretor do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima.

De acordo com Taques, o aparato de segurança precisa de mudanças estruturais, "não em homenagem a uma ou a outra categoria, mas em homenagem ao próprio cidadão".

O quadro de insegurança compõe-se de imagens "dramáticas" colhidas pelos especialistas em levantamentos e pesquisas: um polícia que morre muito e que mata muito; resolução de crimes em percentual pequeno; falta de confiança da população no sistema de segurança; aumento do número de homicídios e de estupros; penitenciárias superlotadas; tempo médio de 1,6 mil dias para os julgamentos de homicídios.

Os números do último Anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública apresentados por Renato Sérgio de Lima mostram um Brasil com mais vítimas fatais resultantes de crimes. No ano passado, foram 47.136 homicídios dolosos. Um aumento de 7,8% em relação a 2011. Cresceram também as ocorrências de estupros - 50.617 casos em 2012, o que equivale a 26,1 estupros por grupo de 100 mil habitantes.

Se as ruas estão mais violentas, a situação não é diferente nas penitenciárias. Segundo o anuário, cerca de 38% dos presos estão em situação provisória, “abrindo margem para uma série de problemas, que vão desde a superpopulação carcerária, até a questão de as facções criminosas ocuparem o papel do Estado”. De acordo com Lima, um levantamento mais antigo feito em São Paulo mostrou que o tempo médio para o julgamento de homicídios no Brasil era de mil e seiscentos dias.

Mata e morre

O anuário revela um Brasil no qual os policiais civis e militares matam muito, mas igualmente morrem muito.

– O policial sai para trabalhar sem saber se vai voltar e na dúvida puxa o gatilho. E isso não é falar contra as polícias brasileiras. É assumir que o padrão operacional está falido. As polícias brasileiras matam mais e morrem mais do que em qualquer outro país - assinalou Lima.

Enquanto a polícia de Nova York matou nove pessoas em 2011, a de São Paulo assassinou cerca de 250 pessoas. No Rio de Janeiro foram quase trezentas mortes. Por outro lado, para cada cem mil policiais brasileiros, 17,8 são mortos em serviço. Fora de serviço são 58,7 mortes para o mesmo grupo de cem mil.

O resultado desta situação, como acredita o estudioso é um crescente distanciamento entre polícia e a sociedade. Isso é demonstrado por pesquisa na qual 70,1% dos entrevistados afirmam não confiar na polícia. Nos Estados Unidos, essa relação se inverte: 88% da população confiam nos órgãos encarregados do policiamento e investigação. Na Inglaterra, a confiança chega a 82% dos habitantes.

Desmilitarização

Na opinião Luiz Eduardo Soares, que também foi secretário de Segurança Pública do Estado do Rio, a segurança pública brasileira permanece como um retrato do passado, com práticas autoritárias herdadas do regime de ditadura militar:

– Chegou a hora de alguma coragem e alguma ambição para passarmos a limpo a segurança pública. Para isso precisamos mexer na Constituição, especialmente no Artigo 144, que trata do tema, sugeriu. Soares observou que a insatisfação é generalizada. Nem os policiais, nem a sociedade gostam do que veem.

No entender do ex-secretário, os policiais militares não-oficiais são submetidos a regimes disciplinares muitas vezes inconstitucionais.

– Esses regimes são draconianos. Desrespeitam os PMs como cidadãos, como trabalhadores e como profissionais - disse, referindo-se ao Código Penal Militar. Ao defender a desmilitarização da PM, Soares explicou que não há como comparar as funções do Exército com as da Polícia Militar, por isso o tratamento deve ser distinto.

Soares disse ainda que, ao contrário do imaginário popular, o Brasil não é o país da impunidade. São 550 mil presos. A quarta maior população carcerária do mundo. Formada, em sua maioria, por pobres, pretos e condenados por crimes de menor gravidade, como ressaltou o senador Pedro Taques

- Não é possível que tenhamos mais de meio milhão de presos e destes, quase dois terços em razão de tráfico de drogas e crimes contra o patrimônio, enquanto os homicídios não são investigados. Os condenados por homicídio doloso são cerca de 60 mil - exemplificou o relator.

Rivalidade

O professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Cláudio Beato Filho, trouxe à Comissão Especial de Segurança Pública mais uma dificuldade encontrada no combate à violência no país. Segundo ele, existe uma rivalidade histórica e crescente, não apenas entre as polícias e dentro de cada corporação, mas entre policiais e o Ministério Público. Além disso, a polícia não é efetiva nem na solução dos casos e nem no policiamento das ruas. O resultado é uma percepção de insegurança

– Mais de 50% da população brasileira acredita que vai ser vítima de homicídio nos próximos doze meses - alertou o acadêmico.

Beato apresentou alguns exemplos bem sucedidos de segurança pública que poderiam ser replicados no Brasil. Um deles foi o do Uruguai, onde há uma única polícia.

– A polícia de Nova York teve um problema gravíssimo de corrupção e foi capaz de se reinventar. Como eles fizeram isso? Basicamente com a depuração de suas polícias e com a profissionalização das organizações policiais - contou o especialista. A Colômbia também teria superado o problema da corrupção.

O professor sugeriu medidas para melhorar a eficiência da polícia brasileira. Uma delas são cursos de Direitos Humanos para esses profissionais. Também aconselhou a implantação de sistemas integrados de informação e o reforço no policiamento comunitário.

– Tem pelo menos vinte anos que ouço falar sobre esse tema e se avançou muito pouco - recordou.

Baixa eficiência

O número de ocorrências policiais no Brasil é incompatível com a capacidade de investigação. O alerta é do professor da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul, Rodrigo Ghiringhelli de Azevedo.

– Diante de uma situação como essa, o que faz o delegado? Ele escolhe. Ele seleciona e essa seletividade não é controlada. Segue o arbítrio do delegado de polícia. Essa é, de acordo com o professor, uma das causas da ineficácia policial na elucidação de crimes - avaliou Azevedo.

Outra causa é a descontinuidade das investigações. A Polícia Militar, que tem o contato com a ocorrência, não tem responsabilidade nenhuma com a produção de dados que vão formar o processo penal.

– Isso é extremamente grave e exclusivamente brasileiro. Não há no mundo nenhuma situação como essa, de uma polícia que não faz o ciclo completo de policiamento - protestou.

O estudioso chamou a atenção para o fato de a polícia civil estar mais preocupada com a produção de um inquérito policial, “do que com uma investigação criminal, que seria a sua tarefa”.

Perguntas e respostas

Taques, que tem um prazo até 3 de fevereiro de 2014 para entregar seu relatório à Comissão Especial de Segurança Pública, acha que a audiência pública desta quarta-feira trouxe uma série de questionamentos a serem respondidos pelos senadores:

- Nós temos muitas polícias. Isso é bom? Nós gastamos muito? Gasta-se bem? Prende-se muito no Brasil? As pessoas que estão presas, merecem estar lá? E aquelas que estão soltas e mereceriam estar presas? A polícia é violenta? É corrupta? É só a polícia? Não é só a polícia?.

Pedro Taques concluiu ser preciso tratar do sistema de segurança pública como um todo, a fim de responder às cobranças da população.

Agência Senado

sábado, 7 de agosto de 2010

'Precisamos de uma nova polícia', diz sociólogo

Professor Claudio Beato defende mudanças estruturais na gestão da segurança

O sociólogo Claudio Beato estuda o fenômeno da escalada da violência no país há mais de duas décadas. Professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), comanda o Centro de Estudos em Criminalidade e Segurança Pública. Ele defende profundas reformas na gestão da segurança – o que, ressalta, implica necessariamente alterar a Constituição. “Hoje, somos obrigados a ter Polícia Militar e Civil. O resultado é que temos duas polícias que não somam uma e não dialogam”, diz. Para realizar a necessária reforma, o especialista diz que o governo federal precisa exercer uma posição de liderança, que incluiria mais investimentos em capacitação e inteligência. “Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal”, afirma, acrescentando que a legislação brasileira privilegia a impunidade. Confira a seguir a entrevista do sociólogo a VEJA.com.

O Brasil tem índices altos de homicídios, considerados endêmicos pela Organização Mundial de Saúde. Como o governo federal pode atuar para diminuir a violência no país?
De diversas maneiras. Em primeiro lugar, exercendo uma liderança estratégica nas mudanças políticas necessárias no sistema de Justiça e segurança. Um exemplo urgente: encampar reformas das polícias, o que implica mudanças constitucionais. Eu chamo de desconstitucionalização da segurança pública, porque é preciso tirar da Constituição o capítulo que trata das polícias. Hoje, somos obrigados a ter Polícia Militar e Civil. O resultado é que temos duas polícias que não somam uma e não dialogam. Isso foi resultado de um lobby na Constituinte de 1988 e que engessou a segurança pública. Essas mudanças também podem ocorrer pela indução de reformas institucionais e organizacionais nas polícias, sistema prisional e Justiça. Em segundo lugar, o governo federal tem capacidade de financiamento que pode suplementar recursos e induzir mudanças importantes nos estados e municípios. Também cabe a ele introduzir inteligência no sistema, através da organização de informações e análise de dados, bem como a utilização de tecnologias para o manejo de dados e preparo de profissionais de segurança pública aptos a esses novos modelos.

O que falta no Brasil: policiais ou eficiência na investigação?
Precisamos de policiais com perfil diferente daquele de que dispomos no Brasil hoje. Policiais em outros países têm sido formados para a compreensão da complexidade do fenômeno criminal, com habilidade para identificar padrões e analisar dados de diversas naturezas e serem capazes de incorporar esse conhecimento no planejamento e investigação policial. Nossas polícias são extremamente corporativas e ainda estão apegadas a orientações bacharelescas ou militarizadas. Pior: por determinação constitucional são divididas em duas, e com uma baixa propensão a compartilhar dados e informações. Isso termina comprometendo tanto a capacidade investigativa como o policiamento ostensivo. Outra questão fundamental é a formação de massa crítica em criminologia que vai estudar, mas também gerir projetos aplicados em segurança pública. Atualmente, o Brasil não dispõe de nenhum curso de mestrado ou doutorado para a formação específica em pesquisa e gestão da segurança pública. Os Estados Unidos têm mais de 50 cursos de doutorado e 150 de mestrado em criminal justice.

Que medidas deram certo em outros países e podem ser adaptadas para o Brasil?
Podemos começar com os processos de reengenharia institucional, tal como ocorreu nas polícias de Nova York ou Los Angeles, especialmente no preparo de profissionais que saibam gerir as ferramentas de análise e informação para fins de gestão e aferição de resultados das atividades policiais. Temos também projetos pontuais de controle de violência de gangues feitos anteriormente em Boston, ou o projeto atualmente desenvolvido pelas escolas de Chicago, onde são identificadas através de análise estatística as vítimas em potencial da violência, com o intuito de evitar que elas se tornem vítimas. É o uso de ciência para intervenção. Da Colômbia, especialmente em Bogotá, Medellín e Cali, podemos tomar os projetos sociais somados à reestruturação das polícias e reformas legislativas. A Polícia Nacional da Turquia está atualmente num processo de qualificação de seus policiais, mantendo mais de cem deles fazendo cursos de doutorados nos principais centros de criminologia do mundo.

Os jovens são a principal vítima da violência no país. Há dezenas de programas sociais, mas os resultados parecem ser tímidos. O que fazer especificamente para diminuir os homicídios?
Esses projetos padecem de falta de foco. Não existem jovens de 15 a 24 anos em abstrato. Eles residem em diferentes territórios nas cidades, podem estar envolvidos ou não com gangues, são usuários de drogas e em contato mais ou menos frequente com o sistema de Justiça e centros de internação ou prisões, frequentam ou não escolas, oriundos de famílias desestruturadas ou não e assim por diante. Cada situação requer programas e estratégias distintos. Existem exemplos dessa abordagem mais focada no Brasil. O mais estudado e avaliado deles é o Fica Vivo, em Minas Gerais, cujo objeto são jovens nessa faixa etária envolvidos com gangues em áreas de alto risco de homicídios.

O Mapa da Violência aponta uma interiorização dos assassinatos no território brasileiro. Por que isso ocorre e como combater o problema?
Trata-se do mesmo processo que ocorreu nas grandes cidades e que agora desembarca nas cidades de porte médio. Tem a ver com processos de urbanização e exclusão espacial, no qual temos vastas áreas de informalidade e de desorganização social. Temos também a expansão do crack nas cidades médias e pequenas que se associa a esse crescimento. De qualquer maneira, a maior parte da criminalidade violenta se concentra nas áreas metropolitanas: 60% dos homicídios ocorrem nessas áreas.

A legislação brasileira privilegia a impunidade?
Sim. Mas não pelas penas aplicadas, que já são severas, mas pelo sem número de brechas, subterfúgios e postergações propiciadas pela legislação processual penal. Aliás, isso não ocorre apenas no Código de Processo Penal, mas no Código de Processo Civil também. Somados a outros aspectos que legislam sobre a fase propriamente policial, e que compõem a fase pré-processual, termina-se gerando uma boa parcela da impunidade brasileira.

Que exemplos de inteligência policial já são utilizados no país e o que falta fazer?
Existem vários exemplos, e o mais destacado deles em termos de inteligência estritamente policial está na Polícia Federal. Diversos estados têm investido na profissionalização de analistas criminais e na implementação de tecnologias de mapeamento de crimes e de organização de dados para a orientação do planejamento. São Paulo e Minas Gerais são os exemplos mais consolidados dessa tendência.

Fechar os bares mais cedo é uma medida que ajuda a reduzir a violência?
Não existem muitas avaliações consistentes desse tipo de programa no Brasil. Em Bogotá, estima-se que isso contribuiu para a redução de cerca de 10% a 12% dos homicídio. Em Diadema (SP), houve também uma redução através do fechamento seletivo de bares em áreas de risco. De qualquer forma, em segurança pública não existem soluções miraculosas e únicas, porque os problemas são muito variados. Como o governo federal pode ajudar na implementação de polícias comunitárias? Policiamento comunitário pode ser uma orientação induzida pelo governo federal da mesma maneira como o governo Clinton fez nos Estados Unidos. Esse é um modelo que sucede o policiamento profissional que ainda está em curso em muitas polícias brasileiras. Trata-se de implantar uma nova forma de relacionamento da polícia com o público, algo que me parece estar na ordem do dia em muitos estados brasileiros.

Em São Paulo, a queda de criminalidade ocorreu simultaneamente ao aumento do número de presos e construção de cadeias. Prender mais ajuda ou as cadeias brasileiras apenas criam mais bandidos?
É evidente que o aumento da população prisional diminui o crime, e diversos estudos atestam isso. Mas a questão é o custo associado a esse processo. O custo econômico dos presos é muito alto, e se for menor de idade é ainda muito maior. Diversos estudos mostram que estratégias de prevenção e repressão, muitas vezes combinadas entre si, obtêm o mesmo grau de sucesso a um custo bem menor. Não significa que temos que abrir mão do sistema prisional, mas que podemos utilizá-lo de forma muito mais seletiva e racional, em combinação com outras formas de controle do crime.

Fonte: VEJA On-line

sexta-feira, 4 de junho de 2010

"Inteligência vai além do que é feito pela Polícia" diz professor Cláudio Beato


O professor Cláudio Chaves Beato Filho, coordenador geral do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança Pública da Universidade Federal de Minas Gerais (Crisp/UFMG), defende que o combate ao crime seja feito com mais inteligência. “O conceito de inteligência deve ir mais além do que é feito na polícia”, diz, referindo-se ao que já existe em termos de inteligência policial.

Ele colabora atualmente para o governo de Minas Gerais, tendo idealizado e implementado programas como o Fica Vivo! e o modelo de Integração Policial e Gestão Segurança Pública (Igesp) no estado. À frente do Crisp, entre as atividades de pesquisa que desenvolve, Beato treina e avalia o policiamento comunitário. Nesta entrevista, o professor fala da importância do monitoramento e avaliação dos projetos e da necessidade de “serem refeitos e repensados ao longo do tempo”, para que tenham sucesso e sejam adequados à realidade.

Beato também é consultor para o desenvolvimento de programas e projetos de controle e prevenção da violência do governo federal, em diversos estados brasileiros e na Colômbia. Também já atuou junto ao Banco Mundial, ao Banco Interamericano de Desenvolvimento e ao Escritório das Nações Unidas para Drogas e Crime (UNODC).

Toda esta experiência parece que deu a Beato uma visão ampla de como se tratar a criminalidade. Ao mesmo tempo, o pesquisador não despreza as peculiaridades dos dados que recolhe e ressalta a importância de estratégias diferentes para tratar da dinâmica criminal em cada localidade. “Não se pode usar a mesma fórmula para lugares diferentes”, defende.

Que conceito de inteligência deve ser usado no combate à criminalidade?

O conceito de inteligência deve ser mais amplo do que é feito atualmente pela polícia. É necessário incorporar a análise criminal. É preciso trabalhar com padrões, tendências, regularidades e, através disto, agir com inteligência no combate à criminalidade.

O que estes padrões nos têm a dizer?

Eles são dados relevantes que exigem analistas de dados, estatísticas e softwares para compreendermos o crime. É uma compreensão de por que ocorrem os fenômenos. Para isso, é necessário trabalhar com profissionais diferentes, multidisciplinares. Daí falar em criação de centros de inteligência, tais como o Instituto Segurança Pública (ISP) no Rio de Janeiro.

Isto, complementado com a investigação policial e atividades de prevenção. A idéia é entender, controlar e prevenir. As pessoas acham que inteligência é a escuta telefônica. Não é só isto. É preciso, por exemplo, o mapeamento da atuação de gangues, a identificação das tendências locais e o modo como as gangues são estruturadas.

O que o Crisp vem analisando hoje?

Há um sistema de monitoramento de gangues na região de Belo Horizonte. Usa-se a tecnologia para compartilhar informações, qualificar pessoal e identificar grupos que atuam na cidade. É preciso compreender qual é o relacionamento que existe entre os membros do grupo.

A inteligência policial não consegue entender como se formam as gangues. Não é só por dinheiro. As gangues são mais que isto. Há um processo de socialização. Fazer parte de uma gangue é ter respeito, é fazer com que as meninas gostem mais de você. Os jovens das gangues não ganham muito dinheiro. É como a gravidez. É uma forma de autonomia das adolescentes, não é só educação sexual que resolve.

Em Minas Gerais nós vemos este tipo de inteligência?

A Secretaria de Estado e Defesa Social (Seds) tem uma assessoria de informações. Parte da análise criminal (referindo-se à secretaria) já foi feita pelo Crisp. Mas hoje a Seds caminha sozinha. Programas como Fica Vivo! e Igesp têm ação estratégica e análise dos dados.

Estes programas mapeiam a criminalidade local?

Eles mostram padrões gerais e tendências locais. Agora, só podemos dizer coisas gerais da dinâmica criminal local, não quer dizer que possamos dar nomes. A intervenção estratégica é importante para acalmar o lugar. Se não se exerce a prevenção, outros projetos ficam reféns nas comunidades. Há lideranças e projetos que ficam nas mãos do tráfico.

O que é feito com estas análises?

Identificamos problemas característicos de cada lugar. Senão, você usa a mesma fórmula de combate ao crime para lugares diferentes. Na Pedreira Prado Lopes, por exemplo, o problema de saúde pública é muito maior que o de segurança, por causa dos usuários de crack. Temos que compreender os fatores envolvidos, que não são policiais, mas sim sociais. Outro ponto na comunidade é a substituição de renda. Lá ainda lucra-se com o tráfico. É preciso conectar dados que estão em instâncias diferentes.

Que tipo de intervenção se faz com estes dados?

Há tipos de intervenções diferentes para os diferentes dados: policial, social ou combinadas. Além da intervenção, é preciso monitorar o que se faz. Não adianta fazer um belo projeto, se os homicídios não caem. O projeto tem de ser refeito e repensado o tempo todo.

O crime tem a ver, na maioria das vezes, com a má distribuição de renda?

Crime não é renda somente. Pergunte aos jovens quanto eles ganham no tráfico. Você vai ver que a maioria ganha em torno de R$ 400. Nós descobrimos que o maior problema nestas áreas é que o jovem é ocioso. Chegamos nas comunidades e vemos um monte de garotos sem fazer nada. A ociosidade é um problema maior que a baixa renda. Trabalhando, o jovem ganharia até mais. O Fica Vivo!, por exemplo, trabalha na ociosidade destes jovens.

Mas a distribuição de renda não tiraria estes jovens do tráfico?

Estes meninos estão na faixa dos 14 anos. Neste sentido, a qualificação dos jovens é mais importante. Mas isto tem de ser combinado com incentivo de locais onde eles possam trabalhar. Isso o Fica Vivo! ainda não conseguiu. É um passo que o programa deve trilhar. O Estado tem de trabalhar em diversas áreas. Qualificação de jovens, empregabilidade. Não só para conter a criminalidade.

Programas de distribuição de renda não contribuem para derrubar as taxas de criminalidade?

As políticas têm de ser focalizadas. O bolsa família, por exemplo, é 20 vezes menos eficaz que o Fica Vivo! para a prevenção de crimes. Aquele é um programa universalizante, e o Fica Vivo! é focalizado. O bolsa família é bom pra tirar pessoas da linha de pobreza, não para combater crimes. Há uma especificidade nos programas de prevenção. Há intervenção estratégica, não são somente programas sociais.
O senhor vê ações como o mapa de georreferenciamento de homicídios publicado pela Seds como positivas?

O mapa é o controle que a sociedade tem sobre a sua área. É uma ação que envolve a sociedade. É um exemplo de tecnologia que foi desenvolvida aqui.

Fonte: Portal Terra

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