Com um dos piores salários do Brasil, os policiais militares do Rio de Janeiro são impelidos a buscar outros trabalhos para complementar sua renda. O chamado “bico” é um problema grave, porque a maior parte das mortes de policiais acontece durante suas folgas, quando, ao invés de descansar, trabalham, geralmente em serviços de segurança privada e muitas vezes exauridos, sem coletes adequados, suporte operacional e a proteção de colegas. Segundo estatísticas da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ), entre 2006 e 2010, 659 PMs morreram, sendo 536 em folga e 123 em serviço - uma proporção de 4,36 para um.
Para compensar os baixos salários dos PMs e suas consequências, o governador Sérgio Cabral instituiu o Programa Estadual de Integração na Segurança (Proeis). O decreto 42.875 foi publicado na quarta-feira (16) no Diário Oficial do estado.
Com a medida, policiais militares da ativa do Rio de Janeiro poderão fazer turnos extras através de convênios entre o estado e seus municípios, mediante gratificação extra, pagas pelos municípios: R$ 175 por turno para oficiais e R$ 150 para praças. O turno adicional é de oito horas de serviço e deverá haver um intervalo de no mínimo oito horas antes de o policial retomar suas atividades normais na corporação.
De acordo com o tenente-coronel Odair de Almeida Lopes Junior, gestor do convênio com a Prefeitura do Rio na PMERJ, o programa deverá começar a funcionar dentro de um mês. Ele explica que será aberta uma conta específica vinculada ao programa para a prefeitura depositar os valores. A PMERJ computará o que é devido a cada policial pelo seu trabalho e depositará os valores constando nos contra-cheques.
O Proeis se baseia numa iniciativa já praticada em São Paulo desde o fim de 2009, a Operação Delegada pelo Estado. A proposta foi apresentada ao Comando da PMERJ pelo tenente-coronel Odair, após viagem a São Paulo na qual atestou o êxito do programa, que reduziu significativamente o comércio irregular na rua 25 de Março, no centro da cidade. O comandante-geral da corporação aprovou a ideia e repassou ao governador, que propôs o convênio ao prefeito.
Segundo o tenente-coronel Odair, os policiais trabalharão fardados, armados, equipados e com as garantias do estado, atuando junto à Guarda Municipal no combate ao comércio irregular, à perturbação do sossego e em tudo que o município achar necessário. As viaturas utilizadas terão identificação do Proeis e os policiais usarão braçais especiais. “O Proeis ajudará a melhorar a remuneração dos policiais e aumentará o efetivo nas ruas, melhorando a segurança da população. O ‘bico’ coloca o policial na clandestinidade”, diz o oficial.
Pesquisadores aprovam medida
A socióloga Julita Lemgruber considera válida a alternativa de permitir que policiais trabalhem em suas folgas em atividades negociadas entre as autoridades. Para a especialista em segurança pública, há uma série de possibilidades para usar a mão-de-obra de folga através de estratégias articuladas.
“É claro que não é o ideal. O ideal seria que recebessem salários que cobrissem suas despesas e de suas famílias com moradia, saúde, educação... Mas enquanto isso não acontece, os policiais do Rio não podem continuar nessa situação de ter um dos piores salários do Brasil”, diz.
Julita enfatiza, entretanto, que essa é uma alternativa para curtíssimo prazo. “Não devemos aceitar essas medidas como algo permamente. Temos é que lutar para que esses homens e mulheres tenham salários dignos”, defende.
De acordo com o superintendente de Planejamento Operacional da Secretaria de Segurança Pública do Estado do Rio de Janeiro, delegado Roberto Alzir Dias Chaves, não há dúvidas de que a melhoria da remuneração do trabalho policial deve ser uma meta perseguida com afinco pela administração pública.
“Já tivemos alguns avanços neste sentido e o governo estadual tem tentado melhorar o quadro salarial das polícias com aumentos superiores aos da inflação, ano a ano. É claro que existe muito ainda a progredir, mas não podemos apenas ficar aguardando esse quadro ser solucionado em definitivo e deixar de lado outras alternativas que possam melhorar as condições de trabalho e remuneração policial, mesmo em seu horário de folga”, afirma.
Ele acrescenta que muitos profissionais, mesmo bem remunerados, optam por destinar parcela de suas horas de folga para ampliar os seus ganhos financeiros, em virtude objetivos pessoais traçados de melhoria das condições de vida e conforto de suas famílias.
O superintendente ressalta que o trabalho extra através do Proeis é voluntário, tem todas as garantias proporcionadas pelo Estado e reforça a parceria entre os poderes públicos das esferas estadual e municipal. Outra vantagem, segundo ele, é o aumento da sensação de segurança do cidadão através da utilização de efetivos ostensivamente trajados e em viaturas oficiais.
Para o antropólogo Luiz Eduardo Soares, é melhor disciplinar o caos do que continuar convivendo com ele, hipocritamente, fingindo que não existe. “O ideal seria pagar muito bem aos policiais e exigir dedicação exclusiva. Não sendo possível, o melhor é reconhecer que o bico existe e regulamentá-lo”, defende.
O coronel Ubiratan Angelo, coordenador do Programa de Segurança Humana do Viva Rio e ex-comandante-geral da PMERJ também é contra a hipocrisia. “Não se pode autorizar o que não é proibido. A maioria esmagadora dos policiais faz ‘bico’ porque ganha pouco e tem facilidade de conseguir outro emprego em segurança. A diferença é que agora há uma articulação entre órgãos públicos para aproveitar essa força de trabalho em folga”, explica.
Para ele, proibir o bico seria tapar o sol com a peneira. Ele conta que sempre exerceu a atividade de professor paralelamente à atividade policial. “A diferença é que declaro no Imposto de Renda”. O argumento é apoiado pelo diretor-executivo do Viva Rio, o antropólogo Rubem Cesar Fernandes, que considera o termo “bico” ofensivo. “É o segundo trabalho, todo mundo tem – cientistas, professores...”, defende.
Blogs reagem ao decreto
Enquanto pesquisadores aprovam o decreto como paliativo, alguns policiais e entidades de classe demonstram desapreço. Para o presidente da Associação dos Ativos, Inativos e Pensionistas das Polícias e Bombeiros militares (Assinap), Miguel Cordeiro, trata-se de “mais uma gratificação disfarçada, pois só atende policiais da ativa.” “A gratificação, maquiada em forma de programa, irá aumentar a defasagem salarial dos demais militares e causar mais descontentamento da tropa, além de quebrar o escalonamento vertical”, afirma em seu blog.
Cordeiro critica o fato de o estado criar turnos extras remunerados sem antes definir uma carga horária de trabalho para os militares. “Essa gratificação é injusta e será dada apenas aos eleitos. A maioria dos praças policiais e bombeiros, por exercer função essencial e não ter carga horária de trabalho definida, além de serem obrigados a ficar de prontidão, trabalham muito mais do que 44 horas semanais. Por que então conceder o benefício só para alguns?”, questiona.
Cordeiro afirma que a entidade é contra qualquer remuneração que contemple apenas parte da tropa e anuncia que o corpo jurídico da Assinap já está estudando formas de questionar essa nova gratificação na Justiça.
O coronel Paulo Ricardo Paúl, ex-corregedor da PMERJ, é menos enfático em suas críticas ao Proeis, apesar de considerar a medida longe do ideal, que seria o pagamento de salários justos para os profissionais de segurança pública.
“Ninguém pode negar que tal situação é melhor do que a opção atual dos policiais militares de realizarem seguranças clandestinas”, afirma. Para ele, entretanto, a hora extra deveria ser paga nos eventos extraordinários, como shows, passagem de ano em Copacabana e eventos em estádios de futebol e no caso de os policiais ultrapassarem o horário de serviço. “A folga do PM não deve ser usada para o bico e sim para o descanso e para o convívio com seus familiares”, defende.
De acordo com o superintendente de Planejamento Operacional da Seseg, Roberto Alzir, no entanto, esta gestão não propõe nada que vá contra o interesse público ou que venha a causar qualquer tipo de prejuízo à classe policial. “O decreto não obriga o policial a nada, apenas visa trazer para a legalidade uma prática usual do policial trabalhar em sua hora de folga, se assim o desejar, passando a destinar a sua hora de trabalho na folga ao próprio poder público com todo o apoio, garantias e estrutura do Estado”, enfatiza.
Ele acrescenta que há a preocupação de que os valores pagos sejam satisfatórios, a carga horária adequada, inclusive com relação aos intervalos de descanso entre as jornadas, além da obediência a criterios rigororosos internos de seleção.
Para o tenente-coronel Odair, muitas críticas vêm do desconhecimento do programa, que seria na verdade um benefício a mais. “A iniciativa é um plus para o policial, uma passo para melhorar a sua qualidade de vida”, afirma. Ele acredita que o Proeis será bem aceito e que terá êxito, assim como os programas similares implantados em São Paulo, Brasília e nos Estados Unidos. Segundo o oficial, outros municípios como Rio das Ostras e Búzios já teriam demonstrado interesse e o programa deverá ser ampliado. “Estamos otimistas”, conclui.
Em 1994, “Lei do Bico” durou pouco
Em 1994, quando o advogado Nilo Batista assumiu como governador do Rio para que Leonel Brizola disputasse a presidência da República, ele criou a chamada “Lei do Bico”, que vigorou por pouco tempo, tendo sido revogada pelo sucessor no governo do estado, Marcello Alencar.
De acordo com a antropóloga Vanessa Cortez, que escreveu monografia sobre o tema, a lei permitia que policiais civis e militares, bombeiros e agentes penitenciários tivessem uma segunda ocupação profissional, especificamente na segurança privada, acendendo um debate acerca do limite entre o que é interesse público e privado, das escalas de trabalho e das questões salariais, trabalhistas e psicológicas. O responsável por derrubar a Lei do Bico teria sido o deputado estadual Carlos Minc, então presidente da Comissão de Segurança Pública da Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Aerj).
Segundo Fernando Bandeira, policial civil e presidente da Federação dos Vigilantes do Rio de Janeiro, ela restringia o bico à segurança privada e não obrigava as empresas particulares a assumirem os encargos, como assinar carteira e depositar o FGTS, por exemplo.
Para o deputado Godofredo Pinto, a lei reforçava o arrocho salarial da polícia, eximindo o estado de pagar melhor à categoria sob o pretexto de que o policial pode ter duplo emprego. Para Carlos Minc, a lei tornava bico a função pública. Outro ponto atacado foi o dispositivo que permitia aos servidores trabalhar apenas em empresas de segurança, o que favoreceria estas firmas, muitas de propriedade de oficiais da PM e delegados.
Foto: Governo do Estado do RJ
Fonte: Site Comunidade Segura
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