José Cristian Góes é jornalista profissional, servidor federal INSS, especialista em Gestão Pública (FGV/Esaf) e Gestão de Crise (Gama Filho). Foi secretário de Comunicação da Prefeitura de Aracaju e presidente do Sindicato dos Jornalistas.
Não poderia ser diferente. Numa sociedade onde a vida se move com base nos ditames do capital, onde os ideais de felicidade e de realização pessoal estão centrados no ter bens, possuir patrimônio, onde não há limites na busca incansável pelo acúmulo, a violência pessoal, coletiva e institucional passa a ser regra, justificável para a proteção dessas “conquistas”. A violência – sutil ou explícita - é parte integrante do capital. São indissociáveis. Ninguém nasce para ser violento, mas educado para o capital e para a violência.
Os casos de violência são tão comuns que deixaram de ser casos. O cotidiano violento banaliza ofensas, assédios, agressões e mortes e que tudo isso passa a ser normal, trivial, indiferente e imperceptível de tão comum. O ato está em casa, nos meio de comunicação, nas ruas, escolas, trabalhos, praia, shopping. Falar, escutar, solicitar, ceder, tolerar, conversar para quê? Usa-se a força e seus instrumentos e está resolvido. O capital produz a pedagogia da violência que é ensinada para que o capital se mantenha protegido e se reproduza.
Assassinatos de negros, homossexuais, crianças e mulheres, todos pobres são justificados pelo capital. Não consomem como o mercado deseja, atrapalham o desenvolvimento, ferem a moral branca, religiosa e machista, e, principalmente ameaçam o patrimônio alheio. Os casos de crimes de maior barbárie entre os pobres ganham amplos destaques na mídia, que servem em generosos espaços para espetáculos novelescos, assim como foram os escravos jogados para as “lutas” contra os leões nas arenas romanas no início do Cristianismo. É tão fantástica a introjeção da violência que vítimas pobres se transformam em culpadas, e que pobres matam pobres em proteção do capital dos ricos.
Na semana que passou mais um caso de violência absurda em Sergipe chamou atenção e ganhou algum espaço na mídia local: a morte do motorista desempregado Liedson Reis dos Santos, 38 anos, dentro do Shopping Jardins, em Aracaju. O rapaz, pobre e negro, teria sido agredido até a morte por seguranças contratados pelo shopping. No mesmo dia e nos dias seguintes, outros jovens também foram barbaramente mortos, todos na periferia de Aracaju e no interior do Estado, longe do shopping. Em Lagarto, um jovem de 25 anos e um adolescente de 14 foram mortos, segundo a única fonte ouvida pela mídia – a polícia – em “troca de tiros com policiais”. Nem esse nem os demais assassinatos tiveram repercussão porque as vítimas estavam na periferia e logo se alega sem comprovação o envolvimento com drogas, acerto de contas, etc, etc e etc, para justificar a “limpeza”... Mal vira estatística.
Mas o porquê o caso de Leidson no Shopping Jardins foi diferente? O porquê ainda repercute na mídia local? A Secretaria de Segurança falou, a sociedade falou e até o governador Marcelo Déda, que estava em Brasília, falou, de lá. A resposta é simples e trágica: Porque Liedson ou poderia ser qualquer um pobre e negro rompeu, ultrapassou a linha clara de classe social, estabelecida pelo capital. O shopping é o templo do consumo, palco intocável da nobre sociedade. Ali se vai para consumir e a nobreza pode fazer o que quiser. Mas o que faria um negro e pobre ali? O que faria, segundo alegações de alguns, aquele homem, de noite, “mal vestido e um pouco alterado” insistindo atendimento em uma loja ou em busca de retirar uma parcela do seguro-desemprego? Aquele ambiente não era para ele: diz o capital.
Um “profissional” da Comunicação local, em uma emissora de rádio com significativa audiência e que deu ampla cobertura ao caso, externou publicamente, de forma bastante natural, espontânea e com certa indignação: “Este crime não pode ficar impune. Isso não pode. Uma morte! Logo no shopping, um lugar de gente chique, um lugar de gente de bem”. Outro profissional fez, por três vezes, a seguinte pergunta para a viúva: “seu marido já teve passagem pela polícia? Ele usava drogas?”. Em prantos, ela negava. Ou seja, por essa concepção, aquele “lugar de gente de bem” e não cabia a Liedson. Ou seja, se a morte contra Liedson fosse na periferia estava justificada e não teria a menor repercussão. Ou seja, há um sentimento sutil de que a culpa pela morte é do próprio Liedson, “que estava no lugar errado e na hora errada”, como disse um jornalista no Twitter. E o que fez a Polícia Militar ao constatar que o homem estava morto? Nada. E por quê? O imaginário do capital a impediu. Imaginou se fosse numa bodega da periferia?
Em razão da repercussão do caso, muito provavelmente pode se chegar a culpar um ou dois seguranças e só. Um já foi preso. Não há possibilidade na lógica da sociedade do capital em se responsabilizar o capital, isto é, o shopping e a empresa de segurança contratada. Todos os aparatos do Estado estão montados para protegê-los. E por falar em empresa de segurança, de quem é a empresa? Por que ninguém divulga seu nome? O que se tem a esconder? Será que essa e outras empresas do ramo treinam militarmente – como se em guerra estivessem - seus trabalhadores para defender o patrimônio alheio, monitorando, perseguindo, espancando e matando pobres e negros ou quase negros ou quase pobres, suposta e eternamente suspeitos?http://www.blogger.com/img/blank.gif
O crime contra Liedson tem forte cheiro e cor de crime racial e social. Ou agiriam com tamanha violência funcionários e seguranças do mesmo shopping se em lugar de Liedson fosse um cliente branco, bem vestido em terno e gravata, anel de doutor e carro de luxo na porta?
Fonte: Página oficial do Blogueiro (http://www.infonet.com.br/josecristiangoes/ler.asp?id=124756)
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