A Justiça Militar é um braço do
Judiciário quase desconhecido entre a própria magistratura e mais ainda
pela sociedade. Vez por outra se ouvem vozes que pregam sua extinção,
mas de regra essa proposta não vem acompanhada de argumentos mais
elaborados. Agora, o tema voltou a ser posto, desta vez por iniciativa
do Promotor de Justiça João Barcelos de Souza Júnior, titular da 2ª
Promotoria de Justiça Militar de Porto Alegre. Solicitamos a ele que nos
expusesse suas razões, e recebemos o texto que segue.
Porto Alegre, 12 de setembro de 2008.
SENHORES JUÍZES:
Concitado a escrever aos Magistrados
sobre as motivações pelas quais o signatário da presente missiva,
titular da 2ª Promotoria de Justiça Militar de Porto Alegre, busca a
discussão sobre a extinção, ou não, do Tribunal de Justiça Militar,
muito me orgulha tecer os breves apontamentos que seguem, solicitando a
mais profunda reflexão sobre o tema em questão.
No tocante à formação do TJME:
inaceitável que um Tribunal, cujos membros são, por força de lei, Juízes
vitalícios, com status, garantia e remuneração de Desembargador, tenha
em sua composição tão somente um Juiz de Carreira. Apenas um Juiz de
Carreira, um membro oriundo do Ministério Público e um outro membro
oriundo da Advocacia. Quatro de seus membros são Coronéis, todos eles
com um único requisito: NOMEADOS POR VONTADE DO GOVERNADOR DO ESTADO.
Aliás, sequer necessitam ter formação jurídica, tanto que em sua
maioria, por força da necessidade, vão aos bancos escolares, conquistar o
Curso de Direito, após terem sido galgados ao alto cargo de
“Desembargador da Justiça Militar”. Isso em pleno ano 2008?
Obviamente, quem defende tal formação
imediatamente dispara: os Tribunais Militares Federais também são
compostos por membros da carreira militar e sem necessidade da formação
em Direito!
Tal assertiva, datíssima vênia, não serve de fundamentação, até porque incomparável a Justiça Militar Federal com qualquer outra Estadual, uma vez que a finalidade daquela é estratégica, incluindo-se “Tempo de Guerra” (hipótese que parece remota, em se tratando de Brasil, mas que não pode ser olvidada, haja vista o cenário internacional).
Tal assertiva, datíssima vênia, não serve de fundamentação, até porque incomparável a Justiça Militar Federal com qualquer outra Estadual, uma vez que a finalidade daquela é estratégica, incluindo-se “Tempo de Guerra” (hipótese que parece remota, em se tratando de Brasil, mas que não pode ser olvidada, haja vista o cenário internacional).
Tal comparação, salvo melhor juízo, é
buscar uma igualdade de necessidade e status que jamais será alcançada.
Some-se aos argumentos, ainda, que Justiça Militar para as Forças
Armadas não é exclusividade do Brasil, mas presente em muitas Nações,
enquanto que Justiça Militar para Polícia Militar Estadual ….. Bem,
resta ainda a pergunta, que outras Nações possuem Polícia Militar,
quanto mais Justiça Militar para Julgar Policiais Militares?
Partindo-se do ponto de vista de que
somente três estados da federação possuem TJME, não parece ser demais
concluir que, no geral, o Brasil rejeita essa idéia. Outro ponto fundamental é a total falta de transparência quanto ao volume de serviço do Tribunal de Justiça Militar do Estado.
Chega ser lamentável ter de fazer
este apontamento, pois é antipático e parece estar acusando os membros
do TJME de práticas não morais no trato com a transparência pública. Ou
melhor, no trato com a “falta de transparência da coisa pública”.
Lamentável, porém de fácil
constatação. Recentemente, tendo em vista os últimos acontecimentos, o
Presidente do TJME foi à mídia e disse que aquele órgão possui cerca de
1300 (um mil e trezentos) processos.
Por demais lamentável, até porque o
número apontado já serviria de base para a discussão da desnecessidade
numérica de um tribunal exclusivo para julgar militares estaduais.
A verdade, entretanto, é que TODA A JUSTIÇA MILITAR, INCLUINDO PRIMEIRO E SEGUNDO GRAU, NÃO POSSUI MIL E TREZENTOS PROCESSOS!
Das quatro auditorias militares do
Estado a que mais possui processos é a Primeira de POA, com cerca de 200
feitos, enquanto que a Segunda possui 119 feitos e, as duas do
interior, menos ainda do que cada uma das apontadas acima.
E o Tribunal Militar: bem, o número é de difícil constatação, pois guardado em verdadeiro “segredo de Estado”.
Em vista das últimas informações, pode-se concluir que um número entre 100 a 300 processos é a melhor margem de acerto.
Pessoalmente, por todas as
informações que já colhi, acho que dificilmente o número chegue a 200.
Não havendo a menor transparência me dou o direito, inclusive como
Promotor de Justiça, de fazer meus cálculos e apontar o número que, para
mim, esteja mais próximo da realidade.
Recentemente, em informações que
busquei para repassar em procedimento disciplinar que tramita junto ao
CNJ (de iniciativa deste Promotor de Justiça) me foi possível concluir
que cada Juiz de Segundo Grau do TJME põe em pauta, mensalmente, a média
de 2,7 processos relatados.
Após ter oficiado ao Presidente do
TJME, sem êxito na resposta (respondeu respeitosamente que o signatário
deveria fazer a solicitação via Procurador-Geral de Justiça), não me
restou outra alternativa a não ser fazer a média pontuada pela Revista
de Jurisprudência do referido órgão, dividindo o número de feitos com o
número de membro e de meses publicados. O resultado, como dito: 2,7
processos relatados por cada membro/mês!
A falta de transparência, dentre
outras coisas, não condiz com as tradições do Rio Grande do Sul, muito
menos com o trato que o Poder Judiciário do Estado do RS sempre teve com
a coisa pública (inclusive lutando com dificuldade de recursos).
E como o Presidente do TJME chega ao número de 1300 feitos naquele órgão?
Sua matemática é simples porém
pecadora: soma todos os feitos de Primeiro e Segundo Grau, incluindo os
Inquéritos Policiais Militares Arquivados que, por força de disposição
do CPPM, devem sofrer correição via Tribunal (prática dispensável nos
demais Estados da Federação). Quando concitado a separar os números
(como feito em recente debate junto à Rádio Bandeirantes AM), o
Presidente dispara: “NÃO POSSO SEPARAR OS NÚMEROS PORQUE A JUSTIÇA
MILITAR DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL É UNA” !
Para não ficar qualquer dúvida é
necessário repetir: segundo o Presidente do Tribunal de Justiça Militar
do Estado do Rio Grande não se pode dividir os números existentes do
Primeiro e no Segundo Grau, para informar apenas o pequeno volume de
serviço daquele órgão, porque a Justiça Militar é UNA!
Sem medo de se afirmar: o jogo de palavras é o que tenta balizar a defesa do TJME. Lamentável!
Sem medo de se afirmar: o jogo de palavras é o que tenta balizar a defesa do TJME. Lamentável!
Outro ponto importante a destacar (e na realidade o que me levou a tomar as providências que hoje busco) é o trancamento de ações penais, via “habeas corpus”, em volume e fundamentações questionáveis, principalmente envolvendo o Oficiais Superiores.
Para exemplificar: há pouco mais de
uma semana atrás foi dado habeas corpus a um Ten. Cel. acusado de três
delitos de falsidade ideológica (habeas nº 937/07). Tal Oficial tinha
exarado duas certidões, constando nelas o total de três afirmações que
não condiziam com a realidade. Passado algum tempo, no trâmite de
instrução de outro processo envolvendo outro Oficial Superior, surgiram
duas novas certidões igualmente da lavra daquele Ten. Cel. (paciente),
e, desta feita, dizendo justamente o contrário que dizia nas duas
certidões que serviram de base para a denúncia. Ou seja, tinha-se
presente, igualmente nos autos do habeas, a prova cabal das falsidades
ideológicas praticadas, haja vista que vieram aos autos, posteriormente,
duas novas certidões que comprovavam o afirmado na peça exordial que
estava sendo atacada pelo writ.
Mesmo com as duas novas certidões;
mesmo com muito mais do que meros indícios de autoria e materialidades,
assim mesmo, por três votos a dois, foi concedido o habeas corpus! Mas tais situações somente são
encontradas em feitos envolvendo Oficiais Superiores, não se verificando
nos feitos envolvendo os praças, apesar do grande volume envolvendo
soldados, cabos e sargentos.
O que se afirma, assim, dentre outras
coisas, é que se tem um Tribunal Militar que desrespeita,
sistematicamente, a Constituição Federal, haja vista que extrapola os
limites do remédio constitucional do habeas corpus e, ainda, por via
transversas, desafia o próprio princípio constitucional que torna a ação
penal como de propositura obrigatória para o Ministério Público.
Outro ponto importante é o viés corporativo inafastável, no que tange a Oficiais (dado ao pequeno universo de Oficiais Superiores no Estado do Rio Grande Sul – + 24 Coronéis na força ativa).
Outro ponto importante é o viés corporativo inafastável, no que tange a Oficiais (dado ao pequeno universo de Oficiais Superiores no Estado do Rio Grande Sul – + 24 Coronéis na força ativa).
Como buscar isenção dentre um grupo de cerca de apenas 24 homens e que, por força de profissão, convivem por mais de 20 anos.
Partindo-se do pressuposto da mais
absoluta boa fé, conclui-se que o constrangimento por julgar,
eventualmente, pares tão próximos, perturba a mente e torna o
inconsciente um “senhor todo poderoso” a se assenhorar das decisões.
Impossível exigir-se isenção, muito menos ainda obter-se tal isenção,
pois isso seria negar a natureza humana e as próprias lições da Ciência
da Psicologia.
Aliás, a respeito da questão corporativa, tem-se a importante opinião do ex-Comandante-Geral da BM, Cel. Gerson Nunes Pereira, o qual se manifestou, em Audiência Pública perante Comissão de Serviços Públicos da Assembléia Legislativa, em outubro de 2003, da seguinte maneira:
Aliás, a respeito da questão corporativa, tem-se a importante opinião do ex-Comandante-Geral da BM, Cel. Gerson Nunes Pereira, o qual se manifestou, em Audiência Pública perante Comissão de Serviços Públicos da Assembléia Legislativa, em outubro de 2003, da seguinte maneira:
…Essa constituição da Justiça
Militar, composta de um Tribunal Militar, da Justiça Militar e de
auditorias militares, passa por um processo importante, Senhores, pois
julga policiais militares. Temos uma preocupação muito grande com isso
porque as decisões finais desse tribunal, que acontecem na Segunda
Instância do Tribunal Militar, vão ocorrer, sempre, e, se
desconsiderarmos a Primeira Instância, VÃO OCORRER SEMPRE SOB A
PARCIALIDADE. …Comentamos essa questão da parcialidade porque a
predominância do Tribunal ocorre pela ação dos coronéis que são nomeados
integrantes desse Tribunal. Esses coronéis, obviamente são vinculados a
um governador e a um partido político, CONSEQUENTEMENTE, JAMAIS TEREMOS
IMPARCIALIDADE NESSE JULGAMENTO. …
Não se pode deixar de apontar, demora no julgamento de recursos e habeas corpus – principalmente envolvendo Oficiais Superiores.
Fácil de se entender a demora: se for
célere o Tribunal de Justiça Militar do Estado ficará com ZERO feitos
e, via de conseqüência, terá de dar férias coletivas para seus
servidores.
Aliás, recentemente tive a
oportunidade de tomar conhecimento de que vários Desembargadores do
Tribunal de Justiça do Estado do RS chegam a colocar em pauta de
julgamento, por mês, até 300 processos.
O cálculo é simples: um só desses
valorosos Desembargadores, se fosse designado para substituir os sete
Juízes do TJME, por apenas um mês, extinguiria o referido órgão pelo
término dos processos.
Assim, ainda que seus membros afirmem de sua celeridade, certamente a celeridade levaria à irremediável extinção do TJME.
Por fim, como derradeira motivação, tem-se os gastos injustificáveis para se manter estrutura tão desnecessária.
Lamentavelmente o Presidente do TJME
tem dito, na mídia, que se trata de um Tribunal muito barato, pois tem
gasto pouco mais de um milhão ano.
Sinceramente, mas não é crível que tais números estejam sendo lançados na imprensa sem a menor contestação.
Reportando-se novamente aos
apontamentos feitos por ocasião da Audiência Pública realizada em
outubro de 2003, na Assembléia Legislativa, perante a Comissão de
Serviços Públicos, o Deputado Raul Pont destacou os números trazidos
pelo então Presidente do TJME à época, Dr. Bona Garcia.
Naquele ano de 2003 os gastos com a
Segurança Pública chegaram a 13 milhões, enquanto que o orçamento com a
Justiça Militar prevista para o ano de 2004 era de 19 milhões. Ou seja,
um absurdo em detrimento da própria segurança de todos.
Absurdo maior são os números
colocados para o público, pois sonegam a realidade dos gastos, até
porque não contabilizam os valores que acumulam, com o passar dos anos,
com os inativos. Isso certamente tem de estancar.
A pequena estrutura da Justiça
Militar de Primeiro Grau certamente pode ser absorvida pela Justiça
Comum, enquanto que os feitos em tramitação perante o Segundo Grau, em
havendo extinção do TJME, sequer serão sentidos pelos senhores
Desembargadores, pois irrisórios diante do gigantismo do Tribunal de
Justiça do Estado do RS.
Em havendo extinção restará, ainda, a
discussão: seu orçamento irá para o Poder Judiciário ou para o
Executivo investir em Segurança Pública (atividade fim)? Indo para o
Executivo, o que garantiria que estes recursos seriam colocados na
Segurança Pública?
Assim, parece muito mais salutar que o
Poder Judiciário do Estado do Rio Grande do Sul se assenhore da
questão, encaminhando Projeto de Emenda Constitucional que promova a
extinção do TJME, e se torne o gestor da Justiça Militar de Primeiro
Grau, reorganizando o quadro e reincorporando o orçamento, ainda que em
parte.
Assim senhores Magistrados, esses são
os apontamentos que considero da maior gravidade. Rogo a Vossas
Excelências que promovam, no seio profissional, toda a discussão
possível sobre o assunto, pois não se pode entender como normais
tamanhas anomalias, ainda que se tenha o mais profundo respeito por
opiniões contrárias.
Um forte abraço a todos!
João Barcelos de Souza Júnior,
Promotor de Justiça titular da 2ª Promotoria de Justiça Militar de Porto Alegre.
Fonte: Blog Judiciário e Sociedade (http://magrs.net/)
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