Por ser dom e parte indissociável da
condição de ser humano, constantemente revejo e reviso minhas posições,
opiniões e conceitos face às rápidas e constantes mudanças cotidianas
verificadas no mundo e na sociedade em que estamos inseridos. Algumas
condicionantes que emolduram permanentemente a individualidade, claro,
conservam-se imutáveis. Caráter, ética, moral, pudor, com o passar do
tempo sofrem acréscimos, nunca dissipações ou transformações radicais.
Por conta disso, não sei se por
pragmatismo ou puro reacionarismo mesmo, não consigo digerir plenamente
certos avanços conceituais surgidos recentemente na discussão mundial
sobre controle do uso e tráfico de drogas ilícitas. Recentemente li
artigo-reportagem atribuído a Jack Cole, fundador do Law Enforcement
Against Prohibition (Policiais contra proibição), publicado no site
Comunidade Segura sob o título “Ponto final na guerra contra as
drogas”*, e confesso sinceramente que, apesar da aparente seriedade de
propósitos da Fundação, os argumentos esgrimidos ali sobre legalização
pura e simples das drogas não me convenceram do acerto e da utilidade
concreta desta abordagem. Seu conteúdo mostra-se superficial, despido de
critérios e informações fundamentais sobre possíveis desdobramentos
acerca da medida, senão parece apenas uma teimosia juvenil da
legalização pela legalização -principalmente sendo em terras alheias.
Baseado em números estatísticos brutos,
sem a devida lapidação da análise conjuntural e estrutural do momento
histórico e da região em que foram colhidos, o entrevistado tenta
introduzir uma receita que, segundo ele, porá um ponto final na conduta
violenta observada nos grandes centros urbanos. E vai mais além: “… não
dou mais que dez anos para isso tudo (a guerra às drogas) acabar”,
vaticina. Sem embargo, o modelo empolga e agrada mais a especialistas de
gabinete, adeptos a experimentos sociais controvertidos em comunidades
estrangeiras, que àqueles interessados em por mais luzes no debate
acerca do fenômeno das drogas.
A abstração – nada mais que isso – de que
a legalização total das drogas, por si só, é capaz de reduzir
drasticamente os atuais índices crescentes de violência e criminalidade,
não passa de renomada balela, de retumbante engodo. A propositura
inusitada não leva em conta dados elementares da dinâmica social. A
exemplo de outros artigos de mesma tendência, insiste em trazer o
episódio único e surrado do fim da proibição do álcool em 1933 nos EUA,
como paradigma e lição sobre a consequente derrocada do crime organizado
e rebaixamento da violência. Esquecem-se, os autores da idéia, de
perlustrar as minudências de outros fatores importantíssimos para o
cabal esclarecimento da proposição.
Primeiro, a mágica da legalização das
drogas não fará desaparecer de chofre uma legião inteira de dependentes
espalhada mundo afora. Diferentemente de 1933, herdaremos a inquietação
do que fazer com este contingente imenso de drogados perambulando pelos
continentes. Pergunta-se: a proposta de extinção da proibição prevê que o
mercado de drogas se realinhe automaticamente, sem intervenção do
Estado e desabastecimentos? Qual seria o primeiro país a adotar
unilateralmente a medida, incorrendo no risco de transformar-se
prontamente em paraíso do consumo? Os EUA, como xerife do mundo? Duvido!
Qual o custo em estrutura de saúde pública, a ser desembolsado pelo
contribuinte, para bancar toda esta aventura sociológica? E mais: caso
não seja uma decisão planetária, o Estado pioneiro seria proprietário de
toda cadeia produtiva do entorpecente, com fazendas de maconha, coca e
papoula – sujeitando-se a subverter radicalmente a função social da
terra, através de uma reforma agrária às avessas? Implantaria e manteria
laboratórios de produção e refino, logística de transportes e controle
de pontos de distribuição, cujos quadros seriam de funcionários públicos
concursados? Terceirizaria total ou parcialmente todo o processo,
mantendo-se apenas na administração do negócio? A droga seria vendida
diretamente pelo Estado, a preços subsidiados, ou simplesmente doada a
quem se dispusesse a preencher um formulário de cadastro? Não sendo
assim, tudo seria deixado à livre e espontânea regulação do “sr.
mercado”, conformando demanda e preço de acordo com as flutuações da lei
de oferta e procura?
Em segundo lugar, não está bem claro na
exposição da extinção da proibição quais os mecanismos de aferição e
mensuração do esperado decréscimo dos níveis de criminalidade. A mera
suposição de seu retraimento baseado tão somente no exemplo longínquo e
descontextualizado do fim da lei seca em 33, não explicita de forma
cabal o objetivo apregoado e soa desarrazoado. São pontos a esclarecer,
mas que ninguém ousa mencionar! São perguntas e assertivas tão diminutas
que as eminências que se debruçam sobre o caso não têm tempo nem
paciência para se dignar respondê-las.
A situação é de extrema gravidade e não
comporta soluções absolutamente comezinhas! Por outro lado, é inegável
que a violência urbana, experimentada hoje em todo o mundo, tem fortes
raízes no tráfico e consumo de drogas. Mas, daí a afirmar que somente a
legalização, como panacéia, traria enorme descompressão em seus níveis
é, no mínimo leviano, para não dizer irresponsável. A violência e o
crime têm muitas outras raízes fincadas, principalmente, no abismo da
desigualdade social; na desesperança causada pela corrupção inibidora do
crescimento do estado; na quadra histórica de cada povo; na intrincada
composição geopolítica e geoeconômica de determinada região; no
desacerto de políticas públicas de governo; na cupidez de certos
pesquisadores etc. Não só e unicamente no problema das drogas.
Neste ponto é bom esclarecer ao leitor
menos avisado que, à primeira vista, as indagações e reflexões expostas
podem parecer coisas de traficante ressentido, discurso de organização
criminosa empedernida interessada em dar sustentação mercadológica a seu
empreendimento, inculpando o Estado por sua tradicional incompetência
em manejar processos complexos de demanda social. Todavia, um olhar mais
atento revelará que este mesmíssimo argumento, com sinais trocados,
está presente no curso de toda peroração sobre a legalização das drogas.
Por fim e não devidamente convencido da sensatez da extinção da
proibição, permaneço agarrado à idéia de que o melhor caminho a ser
trilhado na busca de soluções para o problema das drogas, passa pela
descriminalização do uso e porte de pequenas quantidades. Temos exemplos
palpáveis a seguir. Sem legalizar e sem esquecer o combate ao tráfico,
há dez anos e silenciosamente, Portugal desenvolve uma política
plenamente sustentável de descriminalização que vem apresentando
resultados animadores.Então, por que um salto dessa magnitude no escuro?
Autor: Nelson José S. Nascimento – Aracaju(SE) – 11/12/2009
Retirado do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
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