Policiais militares são uma classe desprovida de direitos e formada para cerceá-los, conclui pesquisador
Uma dissertação de mestrado defendida recentemente no Programa de Pós-Graduação em Sociologia (PPGS) da UFSCar coloca em destaque um aspecto pouco abordado do fenômeno da violência associada à Polícia Militar (PM): as condições precárias de trabalho e os processos de vitimização - física e psicológica - dos policiais militares e, especialmente, dos chamados "praças", que atuam no lugar mais baixo da hierarquia e, ao mesmo tempo, na linha de frente da segurança pública nas ruas de todo o País. A pesquisa foi realizada por Bruno Renan Joly, sob a orientação de Jacqueline Sinhoretto, docente do Departamento de Sociologia (DS) da UFSCar e coordenadora do Grupo de Estudos sobre Violência e Administração de Conflitos (GEVAC).
"São vários os trabalhos na Sociologia que se debruçam sobre a violência cometida pela PM contra os civis, o que é plenamente compreensível, em razão das polícias militares brasileiras, em especial de São Paulo e do Rio de Janeiro, estarem entre as mais letais do mundo segundo várias pesquisas. No entanto, a questão da vitimização policial é pouco abordada e é de grande importância justamente pelos policiais brasileiros estarem entre os que mais matam e mais morrem no mundo. Por isso eu segui por essa via, de tentar compreender como os próprios policiais se veem em relação ao ambiente militar, o que pensam", afirma Joly. Para tanto, o pesquisador realizou, além de pesquisa bibliográfica e documental, a coleta de depoimentos de policiais militares e ex-policiais (três praças, um ex-praça e dois oficiais), quase todos com pelo menos 20 anos na instituição policial, o que resultou em depoimentos impactantes que ilustram casos de adoecimento físico e psíquico, perseguições dentro da instituição, exclusão, óbitos em serviço e suicídio concretizado ou vislumbrado.
As entrevistas expõem "um cotidiano profissional permeado pela convivência com a violência, seja aquela oriunda dos próprios colegas de farda, seja a violência vivenciada em situações em que esses profissionais são chamados a intervir", como anota Joly na dissertação. "Nossos interlocutores atribuem seus problemas de saúde a basicamente duas causas: a vivência cotidiana com a violência das ruas e os assédios e pressões sofridos, concretizados por superiores hierárquicos", complementa. Assim, além do entendimento do risco como algo inerente à profissão de policial militar, o trabalho também traz uma abordagem do conceito de risco que destaca justamente o papel determinante que as instituições vinculadas ao campo da segurança pública têm em relação às altas taxas de adoecimento e morte, incluindo o suicídio, entre os trabalhadores da PM.
Ao tratar das condições precárias de trabalho dos policiais militares, Joly registra como esse conceito de "trabalho precário" vai além da dimensão material. "Há um estímulo às práticas de risco, a que os policiais partam para o confronto bélico, o que aumenta a letalidade policial - especialmente contra negros e pobres - e, também, tensiona ainda mais o cotidiano do policial. Isto está associado também a discursos maniqueístas de 'luta entre bem e mal' e 'bandido bom é bandido morto', que fazem com que os policiais acreditem que são heróis que estão sozinhos na 'luta contra o crime', que a Justiça beneficia bandidos e, assim, cabe a eles fazer justiça", afirma o pesquisador da UFSCar. "Além disso, é frequente o relato de que os oficiais superiores negam afastamento a policiais doentes, acusando-os de preguiçosos, de fingidos. De que eles são estigmatizados, pelo uso de expressões pejorativas, sexistas e machistas, o que prejudica o convívio com os pares e, assim, potencializa os quadros clínicos já existentes. Por fim, uma das críticas mais recorrentes que ouvi diz respeito à falta de estrutura adequada para atender policiais com problemas psicológicos, incluindo a falta de psicólogos", complementa ele.
Em suas conclusões, Joly elenca, como um dos resultados de todo esse quadro, o fato dos policiais militares não poderem ser profissionais garantidores de direitos - como prevê a Constituição brasileira -, mas sim sujeitos garantidores de deveres, cuja função está centrada na manutenção da ordem social. "O militarismo cerceia uma enorme quantidade dos direitos constitucionais desse profissional, atribuindo-lhe muito mais deveres que, se não cumpridos, geram punições de várias formas. E, assim, será essa a lógica que os PMs reproduzirão nas ruas", afirma o pesquisador. "Das entrevistas, podemos aferir que a esfera dos direitos não está muito presente na vida desses profissionais. Direitos como a liberdade de expressão, de associação política ou sindical, dentre outros, não existem para esses profissionais, que são trabalhadores tanto quanto um médico, um professor, ou qualquer outra classe profissional. Temos uma classe profissional enorme, quantitativamente falando, que é desprovida de uma série de direitos e formada para cercear os direitos de civis que vão às ruas reivindicar. É um grande problema", conclui.
Fonte: Universidade Federal de São Carlos
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