sexta-feira, 4 de junho de 2010

ÉPOCA Debate: Como melhorar a segurança

A primeira edição de ÉPOCA Debate vai discutir o que o governo federal deve fazer para melhorar a polícia e combater a criminalidade

Já faz bem mais de 20 anos que estudiosos de diversas tendências concluíram que o modelo de organização das polícias estaduais no Brasil está esgotado. O país continua sendo o único do mundo em que duas corporações dividem a apuração de um mesmo crime. A Polícia Militar faz o atendimento inicial das chamadas, é treinada para o combate e fica responsável por eventuais flagrantes. A Polícia Civil começa seu trabalho quando termina a atuação militar, conduz as investigações e elabora os inquéritos. Além dos prejuízos decorrentes de uma comunicação imperfeita entre as corporações, essa divisão de tarefas gera rivalidade, hostilidade, disputa de verbas e prestígio. O atestado mais eloquente da falência do modelo são os frequentes conflitos em que policiais militares e civis trocam tiros, já ocorridos em vários Estados.

Há mais de 20 anos, fala-se em unir as duas polícias. Tal fusão poderia acabar com as rivalidades e dar eficiência às investigações, já que a falta de cooperação é uma das principais explicações para a crônica precariedade dos inquéritos policiais. Mas a união das polícias, ou qualquer outro tipo de reforma na área, só pode ser feita por mudança constitucional. Do ponto de vista político, isso implica o engajamento do Poder Executivo Federal e de um número considerável de lideranças do Congresso. Essa ideia, apresentada como solução para o setor durante anos, esperou tanto tempo para ser apreciada que acabou envelhecendo mesmo sem nunca ter sido testada. Morreu antes de existir. “Hoje, muitos críticos entendem que a fusão não é mais um caminho adequado”, diz o antropólogo Luiz Eduardo Soares, ex-secretário Nacional de Segurança Pública e coautor do livro Elite da tropa. “Juntar duas instituições degradadas, com despreparo, desqualificação, formação débil, corrupção e má gestão resultará em problemas ainda maiores.”

Até agora, o tema segurança foi abordado apenas superficialmente pelos principais candidatos à Presidência. Nenhum fez uma defesa detalhada de suas ideias ou apresentou qualquer esboço de programa de governo. Os indícios mais fortes de propostas foram citados em programas populares de TV, de apresentadores especializados em cobertura policial. Na semana passada, em conversa com o apresentador Ratinho, do SBT, o tucano José Serra falou em criar uma “Polícia Federal fardada”, mas não deu detalhes sobre a proposta. Dias antes, no programa do apresentador José Luiz Datena, da Band, Serra prometera criar um Ministério da Segurança.

A petista Dilma Rousseff e Marina Silva não foram além de Serra. Até agora, as duas limitaram-se a dizer que são contra a criação do Ministério da Segurança, posição semelhante à do atual ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. Em suas entrevistas, Dilma tem dado ênfase à questão do combate ao tráfico de drogas, como o crack, assunto com conexões com a área de segurança. Marina organizou um debate, mas participou só como ouvinte e não se comprometeu com nenhuma proposta. Até agora, o tema foi abordado apenas superficialmente pelos candidatos à Presidência

“Justiça e segurança” é o tema da primeira edição de ÉPOCA Debate 2010, uma série de discussões sobre alguns dos temas mais importantes da agenda nacional que deverão ser enfrentados pelo próximo presidente da República. O evento, aberto à participação de leitores, ocorrerá no dia 18 de maio na sede da Editora Globo, em São Paulo. Os convidados são o ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, o antropólogo Luiz Eduardo Soares e Denis Mizne, um dos coordenadores da campanha do desarmamento e diretor do Instituto Sou da Paz, entidade fundada em 1997 em São Paulo.

Eles vão debater as responsabilidades diretas que o próximo presidente da República deveria assumir, o foco prioritário dos investimentos e questões como a superpopulação carcerária. A história da unificação das polícias Militar e Civil – que caducou antes de existir – revela como é extremamente difícil para os políticos implementar reformas e inovações na área de segurança, um setor que disputa o topo do ranking das preocupações dos cidadãos. ÉPOCA entrevistou estudiosos para listar as principais propostas que circulam no meio acadêmico, no Congresso, em ONGs e em outras instituições ligadas à área de segurança. Nem todas exigem pesados investimentos do poder público. Tais ideias, que serão discutidas no evento do dia 18, também servem de parâmetro para o debate entre os candidatos sobre o que pode ser feito pelo próximo presidente na área de segurança. As principais:

Tornar as polícias responsáveis pela apuração completa dos crimes

Depois de abandonar a ideia da fusão das polícias Militar e Civil, muitos passaram a defender um novo conceito de reforma. Pela proposta, elas continuariam separadas, mas com atribuições diferentes das atuais. Cada uma ficaria responsável pela apuração completa de um conjunto predeterminado de crimes, sem interferência da outra, num modelo conhecido como polícia de ciclo completo. Numa das propostas, a Polícia Militar cuidaria exclusivamente dos crimes contra o patrimônio, como roubo, furto e estelionato. Nesses casos, faria o serviço completo, da prevenção ao inquérito. A Polícia Civil ficaria com o ciclo completo do combate ao crime organizado e da apuração dos crimes contra a vida, como homicídios. Outros tipos de delito seriam divididos com a mesma lógica: o responsável assume o serviço completo.

Nos últimos anos, alguns estudiosos assumiram a defesa do modelo de ciclo completo. Um deles é o advogado Denis Mizne, diretor do Instituto Sou da Paz. “Reformar a polícia deveria ser um projeto prioritário do próximo governo. Ele precisa ganhar a mesma urgência da reforma tributária ou previdenciária”, diz Mizne. “O governo federal alega que as polícias são estaduais e ficam se escondendo da discussão. Deveria ser o contrário: como não tem polícia, deveria usar isso a seu favor. Politicamente, é mais fácil liderar uma reforma sem ter de enfrentar as corporações.”

Outro defensor da ideia é o sociólogo Marcos Rolim, consultor de órgãos públicos em segurança e direitos humanos. “O atual modelo, herança da ditadura, faz com que cada Estado tenha duas metades de polícia. Comprovadamente não funciona. A tendência mundial é a multiplicação das polícias, com divisões por região ou por tipo de crime”, disse Rolim na semana passada, durante um debate promovido em São Paulo pela candidata do PV à Presidência, Marina Silva. “Entendo que a divisão por modalidade também criaria competição, mas a competição exitosa.”

Melhorar o uso do Fundo Nacional de Segurança Pública

O principal instrumento do governo federal para influenciar a política de segurança dos Estados são as verbas do Fundo Nacional de Segurança Pública. O fundo dispõe de R$ 300 milhões por ano para ajudar os governadores a comprar armas, viaturas, rádios e outros equipamentos. O fundo foi criado no ano 2000, no governo Fernando Henrique Cardoso, num período crítico de violência. A liberação do dinheiro ocorre conforme a apresentação de projetos. Apesar de ter crescido nos últimos anos, a verba do fundo é insuficiente para as demandas de 26 Estados e do Distrito Federal.

A mais importante reivindicação diz respeito aos critérios de uso do fundo. “O governo poderia associar a liberação desse dinheiro a exigências como melhoria das estatísticas policiais, políticas reais de prevenção, melhoria da gestão, queda da letalidade, respeito aos direitos humanos, fortalecimento da corregedoria e melhoria das cadeias”, diz Mizne. “A regra não precisa ser complexa: Estado que mantém gente presa em contêiner não recebe dinheiro federal”, afirma Rolim.

Aumentar a profissionalização da Polícia Rodoviária Federal

Uma das marcas do governo Lula, mote de propaganda do PT, é a modernização da Polícia Federal. A PF recebeu investimentos e passou a ter uma atuação mais destacada, com operações sofisticadas de investigação. Apesar disso, não há notícia de avanço semelhante na Polícia Rodoviária Federal, órgão que responde ao mesmo Ministério da Justiça. “A Polícia Rodoviária continua aparelhada politicamente”, diz Soares.

O governo não concorda com esse diagnóstico. “A imagem da Polícia Rodoviária não é mais compatível com sua realidade. Nos últimos anos, seu efetivo passou de 7 mil para 10 mil homens, os salários dobraram, ela atraiu gente mais qualificada, foi equipada e passou a ter um leque maior de atuação: agora também combate delitos e presta socorro”, diz o ministro da Justiça, Luiz Paulo Barreto. “Uma prova disso é que, hoje, a Polícia Rodoviária apreende mais drogas que a PF. Em 2009, prendeu 111 mil pessoas e apreendeu 12 mil armas.”

Criar mais presídios federais

O país tem quatro presídios federais, mas há uma sobra de 300 vagas nessas cadeias, segundo o Ministério da Justiça. Isso ocorre porque o modelo foi desenvolvido com uma missão específica demais: desonerar os Estados da custódia dos presos mais perigosos. A ideia funcionou. Não há notícia de fugas ou abusos internos. Mas o modelo é limitado. Se os presos condenados pela Justiça Federal fossem enviados para os presídios federais, haveria enorme déficit de vagas. Para atender esse público, seria necessária a construção de pelo menos um presídio federal por Estado.

Outra ideia relacionada a presídios, defendida por Luis Flávio Sapori, ex-secretário de Segurança de Minas Gerais, é criar cadeias específicas para prisões temporárias. Isso serviria para não misturar os presos condenados com aqueles que são detidos apenas para averiguação e facilitaria a gestão do sistema.

O envolvimento insuficiente do governo federal com os Estados na construção de presídios também merece maior atenção. O país tem hoje cerca de 500 mil presos, 180 mil a mais que o número de vagas. Desse total, cerca de 80 mil ainda estão em delegacias, completamente inadequadas para a custódia. Seria essencial estabelecer uma política nacional para a construção de novos presídios. Nos casos mais graves de falta de vagas, há presos em contêineres, algemados em pilares ou em corredores do lado de fora da cela. A construção de novos presídios serviria não apenas para acabar com esses casos escandalosos de desrespeito aos direitos humanos. Colocar mais criminosos na prisão e mantê-los presos também é um fator diretamente ligado à redução da criminalidade.

Melhorar a distribuição de verbas do Pronasci

O governo Lula criou o Programa Nacional de Segurança Pública com Cidadania, o Pronasci. Trata-se de um fundo de R$ 1,4 bilhão para financiar mais de 90 medidas de prevenção. Mais da metade da verba, porém, está concentrada num único projeto: uma bolsa de R$ 400 por mês para policiais de todo o país que fazem cursos de qualificação a distância. “O Pronasci poderia ser mais bem aproveitado como instrumento de indução de políticas se não estivesse tão concentrado nas bolsas”, diz Mizne. Barreto, o ministro da Justiça, reconhece que o programa está muito concentrado em apenas um aspecto, mas diz que isso foi “estratégico para atender a uma demanda urgente” e que, com o tempo, essa concentração tende a diminuir.

Diminuir a certeza de impunidade

A sociedade brasileira pune mal. E, quando pune, faz isso de forma desigual e com violência. “Um dos grandes eixos de uma nova política de segurança tem de ser a diminuição da impunidade”, diz Sapori. Vários dados corroboram essa afirmação. O primeiro é a baixíssima taxa de esclarecimento de homicídios, em torno de 5% dos casos – 95% dos crimes ficam impunes. Como nem todos os crimes esclarecidos resultam em condenação, muitas vezes por causa das possibilidades quase ilimitadas de recursos judiciais, a punição efetiva para criminosos é quase residual. Mesmo depois de preso, um criminoso com acesso a bons advogados (em geral, os mais perigosos) tem à disposição um arcabouço legal formidável para obter reduções de pena. As leis que garantem essa certeza de impunidade precisam mudar.

Fonte: Site da Revista Época

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