sábado, 8 de janeiro de 2011

Mais cidadania para o policial brasileiro

Entrevista concedida para a parceria entre o portal Comunidade Segura e o Fórum Brasileiro de Segurança Pública

ENTREVISTA/Eduardo Paes Machado


Professor da Universidade Federal da Bahia, Eduardo Paes Machado sempre trabalhou com sociologia rural - migrações, sociedade agrária e campesinato. Em 1995 foi convidado a acompanhar um estudo sobre quadrilhas de assaltantes em Salvador e para participar de um estudo da Organização Panamericana de Saúde sobre violência urbana. Se apaixonou pela segurança pública e não parou mais.

Machado estudou os rituais de passagem que fazem parte do treinamento de policiais militares. "A socialização que ocorre dentro de uma academia de policia busca modificar em profundidade as imagens dos sujeitos acerca deles mesmos e as imagens que outros tem dele. Há uma abdicação de valores e estilos de vida e a interiorização de novos valores", avalia.

Com mestrado na Université Paris, França, e doutorado em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas, Machado também tem experiência em saúde do trabalhador com passagens pelas universidades de Massachusetts, nos Estados Unidos, Toronto, no Canadá, e Sheffield e Salford, no Reino Unido. Para ele, existe pouca preocupação com a saúde do policial no Brasil. "É necessária mais cidadania para o policial, do mesmo jeito que se exige cidadania para o pobre, o favelado, e todas as demais minorias", defende.

Como o senhor se interessou pelo tema segurança pública?

Eu comecei a me interessar pela segurança pública entre 1995 e 1996, quando tive a oportunidade de acompanhar um estudo sobre quadrilhas de assaltantes em Salvador. Simultaneamente, fui convidado para participar de um estudo da Organização Panamericana de Saúde acerca dos valores, normas e atitudes relacionadas à violência urbana.

A pesquisa foi realizada em duas cidades do Brasil – Salvador e Rio de Janeiro – e também em outros países da América latina.Foi uma verdadeira escola, uma oportunidade de aprendizagem para conhecer uma temática que não era, até então, o meu objeto de pesquisa, uma vez que eu tratava de sociologia rural, migrações, sociedade agrária, campesinato.

Eu gostei tanto do tema que abracei de vez o objeto de estudo e fui percebendo o espaço de diálogo que ele me abria, não apenas com alguns setores da Academia, mas também com os setores externos a ela, como as preocupações cotidianas com a segurança.

Como a segurança pública é abordada na Bahia?

Existe o Instituto de Saúde Coletiva, da Universidade Federal da Bahia, que desenvolveu duas linhas de estudo que contribuíram para o debate. A primeira linha trata dos homicídios, produzindo estudos sobre a magnitude, a frequência, a distribuição espacial, entre outros dados.

A outra linha é de caráter mais sociológico, com foco na saúde coletiva nas vítimas de crime. Antes, o tema da segurança pública era trabalhado principalmente na questão da violência de gênero, não tínhamos estudos contemplando vítimas de outros crimes. Então começamos a estudar vítimas de roubos, e isso é uma especificidade da Bahia, enquanto, por exemplo, o Rio de Janeiro se concentrou nos estudos sobre o tráfico.

O senhor fez uma pesquisa sobre a relação entre ensino e os ritos de passagem da Polícia Militar da Bahia. Poderia falar sobre essa relação?

Eu orientei uma dissertação de mestrado cujo orientando era consultor da Polícia Militar e participou do processo de reestruturação da corporação. Isso representou pra mim uma oportunidade de adentrar em um universo pouco conhecido, que é da socialização policial - o ensino e o treinamento policial.

A socialização que ocorre dentro de uma academia de policia busca modificar em profundidade as imagens dos sujeitos acerca deles mesmos e as imagens que outros tem dele. Há uma abdicação de valores e estilos de vida e a interiorização de novos valores.

Alguns autores defendem que a socialização policial chega à sua finalidade quando produz uma metamorfose nos sujeitos, que antes de entrar na polícia antecipavam algo sobre a instituição, tinham suas expectativas, e, como consequência dos ritos implícitos e disciplina, do currículo implícito e explícito, sofrem uma metamorfose em relação às expectativas iniciais.

Como assim?

Muitas pessoas achavam que bastava colocar o policial dentro de uma sala de aula, dar explicações e fazer debates, que ele entenderia melhor determinadas questões como a dos direitos humanos. Depois de algum tempo começou a se dar mais atenção à chamada cultura ocupacional, gerada no trabalho policial, da qual aspirante ouve muito.

O recruta ouve o professor, mas dá mais atenção ao trabalho do operador que já atua na área, como boa parte dos estudantes. Toda categoria profissional tem sua própria cultura ocupacional em forma de saber informal, baseado em histórias, experiências. E esta cultura ocupacional influencia a socialização policial, havendo assim uma renegociação da identidade do recruta.


E esses ritos de passagens mudaram?

Melhoraram em vários lugares. O trabalho trouxe uma reflexão crítica aos operadores de segurança publica. Antes, retratavam formas de socialização muito brutais dentro da academia. Estas formas vêm se modificando, diminuindo os componentes de humilhação e violência.

Com a redemocratização, há uma expectativa nova acerca do papel policial: ainda que uma parte significativa da sociedade aposte no policial truculento como uma maneira de remediar os seus medos, há também uma expectativa de que o profissional policial possa contribuir efetivamente para resolver problemas do cidadão.

Para isso, é necessário que este profissional tenha maior capacidade de julgamento e reflexão. Ou seja, o policial não pode ser treinado apenas com os métodos do chamado "treinamento sob pressão" - que é submeter estas pessoas a situações limites, que envolvem humilhação e mortificação do ego, uma degradação brutal do estatus civil.

Por que o senhor acha que uma parte significativa da população apoia o policial truculento?

Nossa sociedade é muito pautada no desrespeito aos direitos civis. O Brasil tem um potencial de crescimento gigantesco, mas tem muito o que avançar em termos de “se civilizar”. Civilização não no sentido elitista ou tecnocrata, mas em termos de mais controle sobre a violência, de parar de acreditar que a violência é a saída.

A violência policial só é legitimada por ser direcionada às camadas subalternas. Superar esta questão representa um benefício para todos, implicando em menos custos sociais para toda a sociedade. Acredito que o grande desafio para a próxima década é o desenvolvimento humano.

E o que o senhor sugere?

Precisamos mudar nossa atitude em relação à segurança pública, em particular, aos policiais. Não podemos exigir nem aceitar um regime que veio da casa grande e da senzala, do capitão do mato, do capanga, da justiça apenas para alguns.

Como foi trabalhado muito bem nos filmes Tropa de Elite, sobretudo no Tropa de Elite 2, ao dar-se muito poder para a instituição policial, a sociedade fica nas mãos dela. No momento em que a sociedade dá um cheque em branco para a polícia, esta tem um poder incalculável sobre os indivíduos.

A polícia também é extremamente vitimada, trabalhando constantemente em risco e usualmente com baixos salários. Como isso pode afetar o trabalho policial?

Qualquer leitura limitada desta instituição que enfoque apenas alguns aspectos é simplificadora e reducionista. Vale lembrar que, quando falamos de vítimas e perpetradores, estamos falando de papéis fluidos, pois ninguém é bom ou ruim o tempo todo, e há constantes trocas de papéis dependendo do grupo onde estes atores estão inseridos. Muitas vezes, o perpetrador aprende a vitimizar sendo vitimizado.

O que pode ser feito para mudar esse quadro?

Um grande problema que enfrentamos no Brasil é a falta de preocupação com a saúde do policial. Há uma dificuldade em admitir que o policial é um trabalhador, que faz uma atividade de altíssimo risco. Aqui podemos pensar em dois tipos de riscos: o do trabalho nas ruas e aquele que resulta da organização de sua instituição. Muitas vezes há um assédio moral ou perseguição por parte de colegas e, principalmente, por parte dos superiores.

A saúde coletiva tem abordagens importantes sobre a questão de trabalho, que tem seus aspectos positivos e negativos, e um desses aspectos negativos é o risco de adoecimento, que é próprio de todas as profissões.

Mas a questão é que um problema com o trabalhador policial acarreta em riscos para toda a sociedade. Por isso é fundamental haver acompanhamento psicológico de qualidade. Todo profissional percebe o reconhecimento que tem o seu trabalho, e o policial sabe que seu trabalho não é reconhecido. Chega a ser cruel esta situação. Por isso deve-se responsabilizar, além da instituição policial, o poder público.

Uma questão fundamental para a agenda política voltada ao policial é a valorização da saúde, com clínicas especializadas e procedimentos éticos de sigilo. Afinal, esse tipo de informação pode prejudicar o trabalho do policial dentro da instituição. É necessária mais cidadania para o policial, do mesmo jeito que se exige cidadania para o pobre, o favelado, e todas as demais minorias.

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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