sábado, 26 de fevereiro de 2011

Violência do narcotráfico é pior em alguns países


Entrevista / Francisco Thoumi

Por que há países produtores de drogas ilícitas que não apresentam os mesmos níveis de violência que outros? O economista colombiano Francisco Thoumi estuda o fenômeno do narcotráfico e sua relação com a violência e não tem medo de "colocar o dedo na ferida" ao responder esta pergunta.

Thoumi critica abertamente a atual política mundial de drogas por considerá-la totalmente ineficiente, mas se recusa a usar o argumento de que a violência na Colômbia é consequência de condições externas. Para ele, a responsabilidade da sociedade colombiana frente à violência que a atormenta é indiscutível.

Doutor em Economia, Francisco Thoumi trabalhou nas universidades George Washington e do Estado da Califórnia, nos Estados Unidos, no Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), no Banco Mundial e como chefe do Departamento de Planejamento Nacional da Colômbia. Entre 1999 e 2000, ele foi coordenador de pesquisa para o Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (Unodc), como parte do programa global contra lavagem de dinheiro.

Em entrevista ao Comunidade Segura, o pesquisador, professor e consultor, hoje radicado em Miami, explica os fatores que contribuem para a violência em países como a Colômbia, México e Brasil, e usa o exemplo colombiano para ilustrar a origem do problema e algumas possíveis saídas.

Como se explica a violência do narcotráfico na Colômbia?

Na Colômbia, há um individualismo moral profundo, falta um sentido de comunidade. É uma sociedade na qual cada um se preocupa consigo mesmo e o efeito das atitudes sobre os outros não importa. É uma espécie de "não pertenço a isto, só me importo se é comigo". Quando uma sociedade tem este tipo de característica, ela é muito vulnerável ao crime organizado. As leis não são cumpridas porque cada um busca o bem-estar próprio. Existe um conflito entre a norma legal e a norma dos grupos sociais. Ou seja, a lei não reflete a sociedade. Quando, em um país, não se cumpre a lei e há uma espécie de aceitação deste fato, a nação se torna muito vulnerável ao crime organizado. A Colômbia tem que estabelecer o império da lei mas, para isto, primeiro é preciso reformar a legislação, para que esta passe a refletir a sociedade.


O que significa dizer que as leis, na Colômbia, não refletem a sociedade?

Existe um ditado na Colômbia que diz: "se há lei, há brecha". A prática de desviar-se do que está dito na lei para buscar um benefício particular já está enraizada. Isso se deve, em parte, tanto às Constituições da Colômbia quanto às leis do período colonial, que foram inspiradas em tentativas de "civilizar os selvagens". Historicamente, se tem almejado aplicar uma lei que não coincide com a cultura, uma lei imposta, importada, que não coincide com as normas sociais nem tampouco com a moral individual. Para que uma lei funcione, ela deve refletir os valores da sociedade. A proibição do álcool é uma lei extremamente exitosa, por exemplo, mas somente em países muçulmanos, onde a cultura tem tudo a ver com essa proibição.


O que deveria ser feito na Colômbia para superar essa incompatibilidade entre o que está no papel e a realidade?

Em primeiro lugar, devemos nos perguntar quem somos e, dependendo da resposta, ver que tipo de sociedade é viável para construírmos. Um grande debate nacional faz falta. E faz falta, sobretudo, reconhecer este problema. Uma vez que ele seja aceito, pode-se estabelecer um diálogo nacional, pois não haverá nenhum acadêmico que possa propor uma fórmula mágica. A mudança social e cultural tem de vir da própria sociedade, de uma aceitação que há um conflito entre normas e que a sociedade deve chegar a um acordo sobre quais normas devem ser respeitadas.

Esta incongruência piora se o país tem que por em prática uma norma internacional como a atual política de drogas, de cuja elaboração não participou?

Sim. Se eu pego uma legislação sobre lavagem de dinheiro, por exemplo, elaborada pelo grupo jurídico mais importante das Nações Unidas, e a transplanto, o "corpo" vai produzir anticorpos para expeli-la - assim como ocorre em todo transplante. Logo, o transplante tem que ser feito nas condições necessárias para que seja bem recebido pelo organismo. O mesmo acontece em nível social: qualquer tipo de legislação precisa de um acordo social prévio - identificar o corpo, as características do corpo e, caso ele precise de um transplante de "rim", procurar o "rim" adequado para que não haja incompatibilidade.


O que as pessoas podem fazer para por fim a uma cultura de violência?

As soluções têm que sair da própria sociedade e, para isso, ela tem que começar a ter respeito pelo outro. O outro deve ser aceito como um ser humano igual. É isso que a Colômbia tem que fazer com as Forças Armadas Revolucionárias (Farc), por exemplo. Mas quando se divide o mundo entre terroristas e vítimas, entre bons e maus, a única solução é eliminar o outro. É o mesmo drama que se passa entre Israel e os palestinos, entre os Estados Unidos e o terrorismo fundamentalista. Onde há uma desumanização, não há paz.


Em um nível mais amplo, como essa transformação política pode ser motivada?

Existem iniciativas interessantes, como a do Partido Verde (dos ex-prefeitos de Bogotá e Medellín), mesmo que sejam muito incipientes. De qualquer maneira, Antanas Mockus fez um trabalho importante, no sentido de harmonizar a moral, a normal e a lei. O grupo de Sergio Fajardo tem uma agenda muito organizada, mas o Partido Verde - do qual ambos fazem parte - ainda não está, contudo, consolidado.


De qualquer forma, o senhor não crê que parte da violência derivada do narcotráfico tem a ver com o fato de que ele é ilegal internacionalmente?

Por que é que depois que os ex-presidentes dos Estados Unidos Richard Nixon e Ronald Reagan,declararam a guerra às drogas nós, colombianos, nos matamos por isso - embora nem os bolivianos nem os peruanos se matem por isso? O mundo pode ser injusto, pode ser que haja fatores externos prejudiciais, mas há fatores internos que não estão indo bem. Os líderes devem tentar fazer algo relacionado a isso e o primeiro passo é reconhecê-lo. Caso contrário, viveremos em uma auto-enganação: na medida em que nos justifiquemos dizendo que "os gringos desgraçados se beneficiam das drogas e enquanto eles não mudarem não poderemos fazer nada", então realmente não faremos nada e nada mudará.


Que similaridades o senhor vê com o caso mexicano, no que diz respeito às causas da violência e às possíveis soluções também?

Há grandes semelhanças entre a Colômbia e o México: são países nos quais houve uma mestiçagem rápida; rompeu-se precipitadamente o controle social detido pelas sociedades indígenas. No norte do país sempre houve um problema muito grande de falta de presença e controle do Estado, e por isso foi tão fácil para os Estados Unidos tomarem essa área (inclusive porque havia apoio interno de algumas destas regiões para que elas passassem a pertencer aos EUA). Não havia maneira de o México poder realmente ter controle efetivo sobre a Califórnia, Nevada e Novo México. Algo similar aconteceu com a Colômbia, no que diz respeito ao Panamá. Logo, ambos os países - Colômbia e México - já nasceram com grandes problemas de controle estatal de território.


E em relação à violência?

Entre 1910 e 1917, o México estava em guerra e, pouco depois disso, começou a violência na Colômbia. Ambos não puderam controlar todo o seu território e impor a lei. No México, a solução foi o Partido Revolucionário Institucional (PRI), um partido de Estado, e na Colômbia, a solução foi a Frente Nacional, que não se denominou um partido de Estado, mas que representou uma alternância no poder entre os dois partidos, da mesma forma como se reparte um tesouro.


E quais são as particularidades do caso mexicano?

Por meio do PRI, o Estado institucionalizou a corrupção como forma de financiamento. Este foi um prato cheio para o crime organizado, que acabou por se tornar quase uma franquia do Estado. O México já exporta drogas para os Estados Unidos há mais de 120 anos, então a droga já existe há muito mais tempo lá do que na Colômbia. Mas somente quando caiu o PRI e caíram os controles que ele detinha é que aumentou o controle da atividade do narcotráfico.

O crime organizado e sua relação com a política no México são muito mais antigos que na Colômbia. O resultado disso é que as forças paramilitares de Los Zetas foram, em sua grande maioria, treinadas por este governo: são compostas por ex-policiais ou ex-militares. Por outro lado, as máfias mexicanas estão muito mais diversificadas, não só traficam drogas, como também seres humanos e armas e, além disso, não só para o país vizinho, mas também para outros destinos.


Por que só agora observamos níveis tais de violência, se o tráfico de drogas já existe há quase um século?

No México, a atual violência em grandre parte se deve à luta pelo mercado interno. Se alega que é uma reaçãon ao confronto entre Calderón e os carteis, mas a luta entre eles não se explica, é uma luta por mercados internos e por territórios. Diz-se que estão lutando por rotas para levar drogas aos Estados Unidos. É poscível que isso seja parte do problema, mas também acredito que haja um mercado interno grande.


Que traços da idiossincrasia mexicana torna essa sociedade tão vulnerável à violência?

Há algo no "ethos" mexicano que pode a estar alimentando: esta necessidade de ser o número um. Não há respeito pela pessoa, mas sim pela posição que ela ocupa, é preciso ter poder, estar sempre "em alta", porque quando se cai, se deixa de ser algo. Tenho estudado também, além disso, o culto à morte. Já há vasta literatura sobre a "santa morte", festas para a morte, santos da morte. É algo que ainda precisa ser muito pesquisado para ser ser compreendido.


Por que o senhor acredita que a questão do tráfico no Rio de Janeiro tomou proporções parecidas com as de Medellín?

Trata-se de zonas urbanas onde não há controle do Estado. A polícia não podia entrar (agora começou a fazê-lo com o programa de pacificação de algumas favelas). A situação de Medellín é diferente, no sentido que não existe a conotação racial que há no Rio e, além disso, no Rio o crime organizado se articula desde a prisão. Isso é diferente, mas a situação na cidade colombiana se deve ao fato que, após a extradição de uma série de traficantes de drogas, houve uma batalha pela sucessão no controle do negócio e, neste processo de seleção, é preciso mostrar quem é o mais forte. Daí esse ressurgimento da violência. No México há algo assim, o que importa é ser o número um, é demonstrar a força. Mas o fenômeno da droga não é um assunto newtoniano. Não há uma série de fatores A, B e C e, como consequência, teremos um resultado determinado. Na realidade, o fenômeno funciona mais como a biologia. Há alguns corpos com defesas baixas ou muito vulneráveis. Mas nem todos os vulneráveis terminam doentes. Neste sentido, não há uma única solução - se quer se proteger, tem que aumentar as defesas e corrigir as vulnerabilidades. Se o objetivo é evitar este problema social, é preciso combater as vulnerabilidades do país.



Foto: Marcia Farias

Tradução: Mariana Mello

Fonte: Portal Comunidade Segura

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