O sociólogo defende que Guardas Municipais ganhem mais protagonismo para evitar casos como o do Espírito Santo. “A segurança pública deve ser mais municipalizada”, diz
A paralisação dos policiais militares do Espírito Santo chega ao décimo dia com um saldo de 146 mortos até as 10 horas desta segunda-feira (13), segundo o Sindicato dos Policiais Civis do Espírito Santo (Sindipol). Alguns policiais começaram a se apresentar no fim de semana, mas as mulheres dos praças seguem ocupando os quartéis do estado, impedindo a volta à normalidade. O dia amanheceu com ônibus circulando na Grande Vitória e o comércio, os postos de saúde e as escolas ensaiando uma retomada das atividades.
Contudo, a paralisação dos policiais gerou uma onda de violência de grandes proporções, que escancarou a fragilidade do sistema de segurança pública. “Temos de pensar em outra maneira de organizar a segurança pública, de forma que não dependamos apenas de uma corporação para manter a ordem na cidade”, afirma Cláudio Beato, diretor do Centro de Estudos de Criminalidade e Segurança da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Como alternativa, ele sugere pensar não em uma polícia apenas, mas em uma segurança pública cada vez mais municipalizada. “Temos de repensar o papel das Guardas Municipais, das Polícias Municipais e de uma segurança pública municipal”, afirma.
Em entrevista a ÉPOCA, Beato chama a atenção para a explosão no número de assassinatos no Espírito Santo logo após o início da greve. Segundo ele, trata-se de um fato incomum, que merece ser investigado a fundo. O normal em casos semelhantes é haver um crescimento dos chamados “crimes de oportunidade”, como os que agridem o patrimônio público, não de homicídios.
ÉPOCA – O que é mais comum acontecer quando a polícia entra em greve?
Cláudio Beato – Considerando o histórico, o que sabemos de greve – inclusive a de 1997, que atingiu vários estados – é que, quando a polícia para, aumentam os crimes contra o patrimônio, que são os chamados “crimes de oportunidade”. Nessas circunstâncias, são pessoas comuns que cometem determinados crimes. São atos “desorganizados” que não têm a ver, necessariamente, com as organizações criminosas.
ÉPOCA – O que chama a atenção no caso recente do Espírito Santo?
Beato – No caso do Espírito Santo, chama a atenção o aumento considerável dos homicídios após a paralisação da PM. Foram 146 em dez dias, segundo a última contagem da Secretaria de Estado da Segurança Pública e Defesa Social [Sesp-ES]. Isso precisa ser investigado e mais bem esclarecido. Não é natural ter uma correlação direta entre a greve dos praças e o crescimento do número de homicídios. É preciso entender como e onde ocorreram esses crimes.
ÉPOCA – Por que vemos um salto tão grande nos crimes na ausência dos PMs? Somos “selvagens” sem o aparato do estado?
Beato – De forma geral, sem mecanismos de controle social, seja a polícia – que é um dos mais relevantes — ou qualquer outro, é comum pipocarem os chamados crimes de oportunidade. Assim como houve no Espírito Santo, acontece o saqueamento de lojas e outros tipos de roubo etc.
ÉPOCA – A polícia do Espírito Santo está em situação pior que as de outros estados?
Beato – De forma alguma. Primeiro porque ela está recebendo o salário em dia. Em outros estados, como Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, há o parcelamento do benefício. É uma pena termos chegado a essa situação no país, mas é uma realidade. E mesmo se for isolada a variável salário, segundo informações do governo do Espírito Santo, ele não é o pior do Brasil, mas o 10º no ranking, que considera dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística [IBGE]. Não posso dizer o que está acontecendo em relação às condições de trabalho e a outras questões que afetam o dia a dia dos policiais. Mas melhorias nas condições de trabalho podem ser negociadas em outra instância.
ÉPOCA – Os últimos governos tiveram uma atuação firme no combate ao crime organizado e à violência de forma geral?
Beato – No primeiro governo de Paulo Hartung [2003-2007], houve uma ação muito decisiva para cortar os tentáculos do crime organizado, que estava se infiltrando em vários poderes, da Assembleia ao Judiciário. Houve ação decisiva na época, que incluiu uma força-tarefa com a Polícia Federal. Isso foi fundamental para diminuir a força do crime organizado, mas talvez não extingui-la. Algo ainda resta. Mas, de forma geral, nos últimos anos as taxas de homicídio vêm diminuindo gradativamente. [O Estado fechou 2016 com uma redução de 15% no número de homicídios, atingindo a menor taxa dos últimos 28 anos]. E Paulo Hartung continuou o trabalho que o governador anterior, Renato Casagrande, começou. Inclusive, manteve o secretário de Segurança, André Garcia.
ÉPOCA – Em termos de formação ou desempenho, a polícia do Espírito Santo é diferente das outras?
Beato – A diferença se dá no grau de formação. Até poucos anos atrás, não havia necessidade de formação superior dos oficiais. Mas, em termos de resultado, não se destaca nem como uma das piores ou melhores. É mediana. O que vemos é que também há problemas dentro da própria estrutura, onde a hierarquia foi quebrada. Isso é algo novo que a paralisação mostrou.
ÉPOCA – Especificamente sobre a PM, o que a paralisação recente no Espírito Santo pode nos ensinar?
Beato – Sobre a PM, há questões a serem pensadas no contexto brasileiro. Existem raízes mais profundas no modelo de polícia, que tem de ser rediscutido. Temos de pensar em outra maneira de organizar a segurança pública, de forma que não dependamos apenas de uma corporação para manter a ordem na cidade. A cidade não pode parar por causa de uma greve. Temos de repensar isso tudo. Nesse contexto, no Brasil todo, a emergência das Guardas Municipais vai adquirir uma proeminência cada vez maior. Já atuavam no Espírito Santo, em cidades como Guarapari, e tentaram minimizar o problema. O fato é que o modelo atual de polícia não funciona. Inclusive a ideia de ser uma PM e de que por isso não pode fazer greve está vencida.
ÉPOCA – Que protagonismo deveriam ter os Guardas Muncipais?
Beato – Temos de repensar o papel das Guardas Municipais, das Polícias Municipais e de uma segurança pública municipal. Em Belo Horizonte, isso tem funcionado muito bem. É positivo ter uma instância municipal que pense a segurança, que não apenas o estado. O estado, às vezes, é uma instância muito ampla e genérica para cuidar de problemas que muitas vezes são locais, circunscritos aos bairros. Temos de pensar não só em polícia, mas em uma segurança pública, cada vez mais municipalizada. Isso é o que temos de fazer para escapar de situações como esta que vimos no Espírito Santo.
ÉPOCA – Como o senhor avalia a estratégia dos policiais de usar suas mulheres na paralisação?
Beato – Perante a Justiça, essa estratégia não tem funcionado. No entendimento dos procuradores, o fato de as mulheres terem ocupado a linha de frente da greve não exime os próprios policiais de não exercem sua função. Pelo contrário, eles podem sofrer sanções, independentemente do papel das mulheres. O Ministério Público tem sido muito firme nesses casos.
ÉPOCA – Em tempos de ajuste e crise fiscal, o senhor acredita que veremos mais greves de policiais, de outras categorias e em outros estados?
Beato – A crise fiscal que os estados enfrentam não ameaça a estabilidade dos PMs exclusivamente, mas de todas as categorias do funcionalismo público, no país inteiro. As cidades e os estados que não cuidaram do ajuste verão proliferar greves de professores e de outras categorias do funcionalismo. O equilíbrio fiscal é uma variável vital para a própria governança das cidades, dos estados e do país. Todos pagam o preço desse ajuste.
Fonte: Revista Época
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