quarta-feira, 8 de setembro de 2010

A controversa desmilitarização das polícias

Tema mais discutido no fórum virtual do portal da 1ª Conferência Nacional de Segurança Pública (1ª Conseg) nos meses que antecederam o evento em agosto, a desmilitarização das polícias prometia -e rendeu - debates acirrados. O resultado foi a aprovação de duas diretrizes que propõem a desmilitarização:

12. 2.19 A - Realizar a transição da segurança pública para atividade eminentemente civil; desmilitarizar as polícias; desvincular a polícia e corpos de bombeiros das forças armadas; rever regulamentos e procedimentos disciplinares; garantir livre associação sindical, direito de greve e filiação político-partidária; criar código de ética único, respeitando a hierarquia, a disciplina e os direitos humanos; submeter irregularidades dos profissionais militares à justiça comum. (508 votos)

18. 3.2. A - Criar e implantar carreira única para os profissionais de segurança pública, desmilitarizada com formação acadêmica superior e especialização com plano de cargos e salários em nível nacional, efetivando a progressão vertical e horizontal na carreira funcional. (331 VOTOS)

Apesar de a palavra "desmilitarizar" aparecer claramente no texto, o conceito por trás dela tem diferentes interpretações. A indefinição do termo e do que deveria ocorrer com as polícias militares do ponto de vista estrutural com a desmilitarização deixam a questão em aberto.

Avanço democrático

Para o professor José Luiz Ratton, coordenador do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Criminalidade, Violência e Políticas Públicas de Segurança da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), a desmilitarização das polícias pode constituir importante avanço no plano da construção democrática de políticas públicas de segurança no país.

Ele explica que desmilitarização não implica, necessariamente, em unificação das polícias estaduais ou mesmo em extinção das polícias militares. "Isto está fora de cogitação, entre outros motivos, por ser absolutamente implausível nos cenários políticos de curto e médio prazo", observa.

De acordo com Ratton, as vantagens da desmilitarização progressiva são várias: descentralizar o trabalho das PMs, facilitando a integração com as polícias civis; impulsionar a inovação organizacional, especialmente de modalidades de policiamento adaptadas aos contextos locais, o que muitas vezes é impedido pelos excessivos níveis de comando e centralização da hierarquia militarizada; diminuir as probabilidades de militarização da questão social, dificultando estratégias criminalizadoras da pobreza e dos movimentos sociais na imposição da ordem pública; reduzir as tensões entre oficialato e tropa, favorecendo a construção de perfis e estratégias agregadoras nas organizações policiais, o que aumentaria a eficácia coletiva das polícias e das políticas públicas de segurança.

Para o delegado Vinicius George, da Polícia Civil do Rio de Janeiro, a desmilitarização das polícias é um passo imprescindível para a consolidação de um verdadeiro Estado Democrático de Direito no país. A seu ver, a militarização histórica do aparelho de segurança pública representa um equívoco filosófico, ideológico, metodológico e de finalidade, já que introjeta uma lógica de guerra no aparelho policial.

"Quartéis, destruição de inimigo, invasão e ocupação de territórios, justiça militar são incompatíveis com a atividade policial, que deve ser marcada pela lógica da cidadania. Polícia deve ser cidadão controlando cidadão, trabalhador controlando trabalhador, de forma legal e legítima, dentro do pacto social, antes de tudo prevenindo os crimes pelo policiamento ostensivo. E quando isto não for possível, deve-se investigar, prender e apresentar os autores da violência à Justiça. A repressão, quando necessária, deve ser feita de forma qualificada, dentro da técnica policial, e não militar", afirma.

Falta definição

Paulo Storani, Secretário de Segurança Pública de São Gonçalo, no Rio de Janeiro, reclama da falta de definição do que seria a desmilitarização.

"Seria acabar com a hierarquia militar? Com a farda? Com as demonstrações típicas de militares, como continências, ordem unida e toque de corneta? Usam o termo, mas ninguém define o que é", questiona Storani, que é professor da Universidade Candido Mendes.

Para ele, a proposta de desmilitarização aprovada na Conseg resulta da articulação de uma corrente das polícias civis dos estados. "Foi plantado um conceito em que todos os males da PM viriam do fato de ela ser militar. Mesmo desmilitarizada, a PM não deixaria de fazer o que já faz. Isso parece mais um pano de fundo para a institucionalização de uma Polícia Civil uniformizada", provoca.

O professor acrescenta que os princípios e diretrizes aprovados na Conseg são vagos e contraditórios entre si, não deixando claro se a Constituição seria modificada para poder contemplar uma nova definição das polícias militares.

Um dos princípios aprovados na Conferência -o segundo mais votado, com 455 votos - recomenda "a manutenção da previsão constitucional vigente dos órgãos da área, conforme artigo 144 da Constituição Federal". Para Storani, se desmilitarizar a PM significar a desvinculação das Forças Armadas e a vinculação ao Ministério da Justiça, "ótimo".

Estética militar para atingir objetivos

De acordo com o coronel Laercio Giovani Macambira Marques, ex-comandante geral da Polícia Militar do Ceará, um erro cometido por muitos que defendem a desmilitarização é não diferenciar a estética militar da missão institucional.

Segundo ele, a estética militar é uma ferramenta que objetiva facilitar a manutenção de uma hierarquia e de uma disciplina rígidas, segundo ele, "fundamentos essenciais para o exercício do comando de corporações ostensivas, armadas e com poder/dever de constranger outrem até o limite legal e legítimo da matar em defesa do cidadão ou para garantir o pleno funcionamento dos poderes constituídos." O coronel lembra que em todo o mundo, na formação básica de policiais - sejam civis ou militares -, há uma boa fatia de preceitos militares.

"A missão é inerente à razão de ser de uma organização, ou seja, a sua destinação. Tanto as polícias militares quanto as Forças Armadas adotam a mesma estética militar como um estilo de gestão. Não há qualquer incompatibilidade em ambas utilizarem um estilo de gestão comum para atingirem os objetivos de sua missão, estes sim, bastante diferenciados", afirma.

De acordo com o coronel Macambira, as polícias militares do Brasil têm sua vida funcional derivada da cultura organizacional do Exército brasileiro. Ele destaca que esse vínculo foi bastante fortalecido a partir de 1964, quando as polícias estaduais atuaram lado a lado com as Forças Armadas na preservação da segurança nacional. Nesse período, segundo ele, houve uma forte massificação nessas corporações da doutrina do Exército, ministrada nas escolas de formação policial-militar, com ênfase em disciplinas como "guerra revolucionária", "organização de defesa interna e de defesa territorial" e "operações contra guerrilha".

O coronel conta que, com o retorno do país à normalidade democrática, o Exército e as polícias militares se distanciaram. Então, os comandos das polícias militares, sensíveis a essas mudanças, a partir de 1983 reformularam os currículos das escolas de formação e de aperfeiçoamento, buscando adequá-los à nova realidade. Segurança nacional deixou de ser prioridade para essas corporações.

"A preservação da ordem pública e a defesa do cidadão e do patrimônio, em parceria com a sociedade, é a principal missão institucional das polícias militares na nova ordem constitucional, em detrimento da doutrina de guerra", afirma. "O que tem que ficar bastante claro é que na expressão 'polícia militar' o termo militar é secundário e auxiliar do termo principal - polícia - e não o contrário", resume.

Para o coronel, as polícias estaduais precisam de um remodelamento psicológico e das relações interpessoais dos seus integrantes, de forma a fomentar uma mudança comportamental de toda a corporação, com foco no cidadão. "Só assim chegaremos, de fato, a uma polícia cidadã, interativa, comunitária e de proximidade", diz.

"Hoje, as polícias militares devem ser fortes, mas não pelo medo que possam impor, e sim pelo respeito que devam conquistar do cidadão comum e da sociedade como um todo, pela sua eficiência, técnica, agilidade e identificação simbiótica com a sociedade. Isso se traduz em uma polícia inteligente", conclui.

Maioria questiona hierarquia militar

Na pesquisa "O que pensam os profissionais de segurança pública no Brasil", feita pela Secretaria Nacional de Segurança Pública (Senasp) em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (Pnud) para subsidiar as discussões da 1ª Conseg, ficou evidente o descontentamento dos profissionais de segurança com a estrutura militarizada.

Dos 64.130 servidores ouvidos - policiais militares, civis, federais e rodoviários, peritos, bombeiros, agentes penitenciários e guardas municipais -60% consideram a vinculação da PM ao Exército inadequada.

Quando perguntados se a hierarquia de sua instituição provoca desrespeito e injustiças profissionais, 65,6% dos consultados responderam que sim. Entre os policiais militares nos postos mais baixos, o índice é maior: 73,3%. Destes profissionais, 81% acreditam haver muito rigor em questões internas e pouco em questões que afetam a segurança pública, e 65,2% acham que há um número excessivo de níveis hierárquicos em sua instituição.

O relatório da consulta destaca que "as PMs não estão organizadas como polícias, mas como pequenos exércitos desviados de função", e que os resultados disso são precariedade no enfrentamento da criminalidade, dificuldade para exercer controle interno, implicando em elevadas taxas de corrupção, e frequente insensibilidade no relacionamento com os cidadãos.

Autor: Paulo Marcelo Venceslau - Praia Grande(SP) - 08/10/2009

Fonte: Fórum Brasileiro de Segurança Pública

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